quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

APRENDENDO COM NOEMI

 APRENDENDO COM NOEMI 

Voltando para casa

 

A preocupação de Noemi (Rute 1:8-9)

Disse-lhes Noemi: Ide, voltai cada uma à casa de sua mãe; e o Senhor use convosco de benevolência, como vós usastes com os que morreram, e comigo. Senhor vos dê que sejais felizes, cada uma em casa de seu marido. E beijou-as. Elas, porém, choraram em alta voz.

 

verdadeira fé sempre pode ser avaliada pêlos frutos do amor; e Rute, a moabita que veio a crer no Deus de Noemi, devia ter aprendido com esta a realidade da fé, experimentando seus benefícios através do amor praticante de sua sogra para com ela.

Noemi surge agora como a personagem principal de Rute 1. No desdobramento da "outra história", o tema da providência de Deus na sucessão dos acontecimentos de situações humanas nas quais Noemi e suas noras se encontram, e a subsequente provisão divina para com Rute e Boaz, vamos nos concentrar primeiro em Noemi e especialmente na fé inabalável de Noemi em Javé. Especificamente aqui vemos como a sua fé se demonstrou ativa em amor.

Antes de mais nada, a preocupação amorosa de Noemi com suas noras encontra sua expressão na oração. Como já se disse com muito acerto: "O que um homem crê ou não crê a respeito da oração é uma boa indicação de suas crenças religiosas de um modo geral. O que ele crê sobre a oração é uma indicação do que ele crê sobre Deus. Mais particularmente, o que o homem faz com a oração é uma indicação do que ele crê a respeito dela."3

A oração é, e sempre foi, o lado ativo da doutrina da providência. A oração é o reconhecimento, não do benefício psicológico de algum exercício mitológico, mas do fato de que nós cremos que Deus existe, que Deus se importa conosco, que Deus está no controle e que Deus providencia tudo, e cremos de tal modo que estamos dispostos a fazer alguma coisa com base nisso, isto é, a falar com ele. 

A providência nos lembra que não passamos de criaturas, que somos dependentes de Deus e que, junto com o mundo todo, estamos sob o senhorio de Deus; a oração é uma atividade pela qual reconhecemos que não podemos ser nosso próprio senhor. A providência nos lembra que nem tudo é desesperadamente absurdo ou sem sentido; a oração é a nossa ma­neira de dizer "sim" diante da convicção de que Deus está operando os seus propósitos na natureza, nos homens e na história. 

A pro­vidência é um lembrete de que o Senhor é um Deus de graça e generosidade; a oração é a nossa maneira de responder ao seu convite para fazermos parte da família da sua aliança, para sermos seu filho ou sua filha, seus cooperadores neste mundo. A providência nos lembra que o Deus vivo não é um destino imutável diante do qual só podemos manter silêncio e ficar passivos; a oração é a nossa reação diante do convite de Deus para que partilhemos da comunhão com ele, uma expressão da nossa união com ele. Como disse P. Forster:

A profundidade do senhorio de Deus é tal que ele permite que tenhamos um lugar no seu governo do mundo ... isto aponta para a seriedade de nossas ações como cristãos. Não significa que estejamos segurando as rédeas do governo do mundo. Elas estão nas mãos de Deus. Mas nós temos o nosso lugar no seu exercício. Em sua onipotência e onisciência supremas, Deus quer partilhar sua vida conosco.

Forster prossegue dizendo que Deus vai retificar e compensar nossa oração quando a responder. Não que a nossa oração seja a coisa certa e segura a fazer, e a resposta de Deus a coisa incerta e insegura. Pelo contrário, nós é que somos desafiados na oração, e não Deus.

Portanto, através da oração nós expressamos a nossa confiança na providência de Deus e descobrimos como a nossa própria vontade deve ser alinhada com a sua vontade soberana e cheia de amor por nós. A nossa ação na oração se encontra na sua resposta transforma­dora.

Isto aconteceu com Noemi em sua oração a favor de Rute e Órfã. Ela orou como alguém que conhecia o seu Deus como o Senhor da aliança. A sua oração aqui é de confiante entrega do futuro nas mãos do Senhor. Ao pensar em suas noras e nas necessidades delas, Noemi ora pedindo que o Senhor, o Deus da aliança, use de benevolência para com elas.

 amor da aliança

Benevolência (versículo 8) traduz a palavra central do relacionamento de Deus com o seu povo através da aliança: hesed, amor constante e fidelidade. É uma palavra "que combina o calor da comunhão de Deus com a segurança da sua fidelidade". 

É a palavra de amor que Moisés canta ao louvar o redentor, e pela qual o povo é convocado para a comunhão da aliança com ele. Noemi louva a Deus por seu hesed em 2:20, e Rute é louvada pelo seu em 3:10. Portanto, é uma palavra que nos diz algo do cará ter do Deus da aliança, e também diz algo das pessoas que demonstram esse caráter em suas vidas. 

O correlativo desta palavra no Novo Testamento é ágape, que descreve o amor sacrificial de Deus pelo seu povo e o amor que ele espera que o seu povo demonstre em troca disso. Talvez a definição mais aproximada é a que encontramos em l João 4:10-11: "Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou, e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados. Amados, se Deus de tal maneira .nos amou, devemos nós também amar uns aos outros."

Noemi confia no Deus do amor e entrega Rute e Órfã aos cuidados dele. Suas noras demonstraram uma bondade maravilhosa para com ela e sua extinta família; que Deus demonstre o seu amor para com elas. Sua preocupação particular era que elas retornassem às suas próprias famílias em Moabe, onde aparentemente pelo menos os pais de Rute ainda viviam (2:11), e que se casassem novamente.

 Um lar

O Senhor vos dê que sejais felizes, cada uma em casa de seu marido', isto indica principalmente o anseio por um "lugar de descanso". A palavra não se refere apenas ao fim dos problemas e do sofrimento (que Rute e Órfã pudessem superar a dor de suas perdas), mas também à experiência positiva da segurança e do conforto divinos. "Volta, minha alma, ao teu sossego (descanso)", canta o salmista, "pois o Senhor tem sido generoso para contigo."

Para entender o pleno significado da oração de Noemi, temos de saber alguma coisa sobre a situação das mulheres viúvas naquele tempo. Considerando que o status das mulheres na sociedade do Antigo Testamento era muito aquém do que lhes foi concedido por Jesus no Novo Testamento (na sua maneira de tratar a mulher junto ao poço, com a siro-fenícia, Maria e Marta, como também no que ensinou sobre o divórcio, garantindo às mulheres direitos iguais aos dos homens), a situação da viúva era ainda pior. 

A esposa estava incluída na propriedade do marido, podendo ser repudiada, e não tinha direito de herança. Era, entretanto, bem superior a uma escrava e, especialmente quando nascia um filho do sexo masculino, era respei­tada dentro da família. Mas a sua segurança repousava no marido e ela tinha poucos direitos próprios.

Portanto, quando morria o marido, a viúva (especialmente se tivesse filhos pequenos para sustentar) ficava em posição muito difícil. A palavra traduzida para "viúva" não apenas indica a morte do marido, mas também dá ideia de solidão, abandono e desam­paro. 

As viúvas eram geralmente mencionadas junto com os órfãos e os estrangeiros. Elas tinham necessidade especial de proteção, e Javé cuida delas de maneira singular." Portanto, o povo era convo­cado a cuidar do direito das viúvas e diversas leis do Pentateuco pro­curavam aliviar o destino delas. Contudo, a queixa do tratamento injusto recebido pelas viúvas é um tema constante nos profetas.

A única esperança que restava de recuperar o status social para uma viúva ainda jovem era casar outra vez. Toda a profundeza de sen­timentos extraídos de sua própria viuvez Noemi colocou em sua oração em favor das duas jovens: O Senhor vos dê que sejais felizes, cada uma em casa de seu marido.

 A dor da separação (l:9b-14)

beijou-as. Elas, porém, choraram em alta voz, e lhe disseram: Não, iremos contigo ao teu povo. "Porém Noemi disse: Voltai, minhas filhas, por que iríeis comigo? Tenho eu ainda no ventre filhos, para que vos sejam por maridos? Tornai, filhas minhas, ide-vos embora, porque sou velha demais para ter marido. Ainda quando eu dissesse: Tenho esperança, ou ainda que esta noite tivesse marido e houvesse filhos, esperá-los-íeis até que viessem a ser grandes? Abster-vos-íeis de tomardes marido? Não, filhas minhas, porque por vossa causa a num me amarga o ter o Senhor descarregado contra mim a sua mão.  Então de novo choraram em voz alta; Órfã com um beijo se despediu de sua sogra, porém Rute se apegou a ela.

 O choro expressava a dor, e a dor era em parte um sentimento de ambivalência de Órfã e Rute, que precisavam escolher entre o seu amor por Noemi e a sua esperança de serem mães num segundo casamento. Inicialmente as duas se recusaram a partir, mas, com a insistência de Noemi, Órfã foi persuadida. 

O raciocínio de Noemi girava em redor da prática do casamento de leviratoQuando um homem morria sem deixar um filho homem, o seu irmão devia agir como "levir": isto é, tomar a viúva, a fim de gerar um filho para o homem morto. 

Talvez Noemi estivesse dizendo a Rute e Órfã que não havia irmãos vivos de Malom e Quiliom que pudessem agir como "levir" e, naturalmente, as jovens não podiam esperar que futuros filhos seus atingissem a idade de casar! De qualquer forma, Noemi já havia ultrapassado a idade de conceber.

O autor pretende descrever um quadro de desesperança: Noemi está enfatizando a completa impossibilidade de providenciar pais para os filhos de Órfã e Rute. 

Conforme veremos, a situação estava longe de tal desespero, pois na providência de Deus, e através da ação de um goel (um parente remidor), Rute receberia um marido e um filho. Mas, por agora, essa esperança não estava ainda no horizonte. E Órfã foi persuadida a partir. Ela beijou Noemi, despedindo-se dela (versículo 14), e presumivelmente voltou a Moabe para procurar outro marido. A propriedade de Quiliom retornou para Noemi (4:9).

A dor não era apenas das noras. Tanto o sofrimento da própria Noemi como a sua participação na dolorosa escolha que Rute e Órfã tinham de fazer expressavam-se nas suas palavras: "Não, filhas mi­nhas, porque por vossa causa a mim me amarga o ter o Senhor descarregado contra mim a sua mão." 

Vamos retomar a este versículo quando chegarmos a Rute 1:21. Note-se, porém, que, apesar do sofrimento, seus pensamentos são voltados para o benefício dos outros (por vossa causa). E, apesar do sofrimento (e até mesmo ira), Noemi ainda se apega ao fato de que aquilo que recebeu veio das mãos do Senhor. Não há sentimentos ocultos, não há fingimento de que não existe ira, não há qualquer gesto estóico, nem falsas afirmativas de que tudo vai bem. 

Enquanto, da perspectiva de sua fé na providência de Deus, tudo vai bem, ela certamente não se sente assim. Como o grito de Habacuque diante de Deus por causa de seu aparente fracasso em evitar que se levantassem os opressores caldeus, para descobrir depois, finalmente, que os próprios caldeus faziamparte do propósito amoroso de Deus e havia, não obstante, fundamentos para confiança na força de Deus, até mesmo alegria, assim também Noemi, aqui, não esconde de Deus seus sentimentos mais profundos.

Muitos de nós até já esqueceram como se lamenta a morte de alguém. Embora devamos nos lembrar de que a fé cristã acabou com o aguilhão da morte e que há lugar para uma palavra gentil de compaixão em certas ocasiões ("Não chores!"), não devemos negar a dor da separação daqueles que perderam os seus queridos.

 Chegará o dia em que a afirmação cristã da esperança de vida em Cristo se tornará a realidade do novo céu e da nova terra, quando "a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor"; mas haverá momentos ainda deste lado do céu quando choraremos e lamentare­mos antes de nossa tristeza ser convertida em alegria.

Naturalmente, a fé cristã tomou obsoleta grande parte da lamen­tação pública prolongada e dolorosa pêlos mortos, o que era costume no Israel de antigamente. Embora os crentes em Javé fossem proibidos de praticar alguns rituais da morte dos cananeus, eles ainda ficavam, durante longos períodos, gemendo e batendo no peito depois da morte de um ente querido. 

A parábola de Jesus sobre as crianças lamentando os mortos quando brincavam de enterro indica que alguns desses costumes ainda prevaleciam no seu tempo. Mas, embora grande parte do desespero dessa lamentação tenha se trans­formado para o cristão com a morte e ressurreição de Cristo, ainda há uma tristeza muito espiritual quando perdemos um amigo e quando a morte penetra em nossa vida. 

Não foi por isso que Jesus chorou junto à sepultura do seu amigo? Em nossa tristeza pela morte, nós, como cristãos, somos sustentados pela esperança da ressurreição dos mortos. Mas não vamos fingir que a morte não machuca e que a tristeza não pode ser expressada. A tristeza é uma coisa real e a sensibilidade renovada pela graça de Cristo pode sentir-se profundamente ferida e, portanto, muito mais suscetível a revelar-se em lágrimas.

Após o choque inicial de dor pela morte de alguém, e após o pequeno período de serenidade forçada por causa dos outros (no funeral, por exemplo), o verdadeiro sofrimento muito naturalmente leva a uma experiência de retorno às emoções que alguns de nós esquecemos desde a infância. Sentimentos, às vezes de culpa, às vezes de raiva, vêm junto com uma tensão que anseia ser aliviada com lágrimas. É depois de passar por esta importante fase, na qual a dor pode ser expressa e chorada, que uma pessoa pode começar a se consolidar e a edificar novamente um futuro. 

Muitos de nós perde­mos contato com os nossos sentimentos, ou esquecemos como é que se chora. Para nós geralmente é mais difícil atingir este estágio de reconstrução. Que as lágrimas dessas mulheres nos lembrem a im­portância de não esconder nossos sentimentos, ou de não fingir que eles não existem. Maturidade implica aprender a expressar nossas emoções apropriadamente. Noemi passou pela dor e chegou à deter­minação de edificar uma vida nova no futuro.

Que Noemi também nos faça lembrar que nossos sentimentos mais profundos e nossas ansiedades não estão ocultos de Deus. Ela deliberadamente apresenta a ele os seus sentimentos de maneira bem franca. Realmente, ela lança toda a responsabilidade do seu destino nas costas de Deus! Ela agora experimenta Deus como um inimigo (cuja mão foi descarregada contra ela). Dele foi também a mão por trás da fome e das mortes, primeiro de seu marido e, depois, dos seus filhos. Mas ela mantém estas amargas experiências dentro do con­texto da sua promessa, lembrando-se, e às suas noras, do seu nome:

 Javé, o Senhor.

O que significa a fé em Javé em períodos de aflição? Mais tarde voltamos os olhos para o sofrimento e, às vezes, discernimos o bem que veio após ele. Outras vezes, não. Frequentemente, podemos crer, o sofrimento nos confronta, mais que qualquer outra coisa, com a transitoriedade e fragilidade de nossas vidas. 

O sofrimento, como bem se vê no livro do Dr. Martin Israel, The Pain that Heals (O Sofrimento que Cura), pode nos colocar em contato com dimensões mais profundas da vida espiritual. O sofrimento (que o Dr. Israel chama de "a face escura" de Deus) pode ser o caminho para o crescimento e a maturidade do caráter: dor que cura. Mas na hora não sentimos assim. Na hora, como o testifica a experiência de Noemi, a essência da confiança, durante toda a experiência da aflição, é nos colocarmos humildemente debaixo da mão de Deus, da qual recebe­mos o golpe, na firme crença de que (apesar de todas as aparências) é a mão do Pai de amor.

"Garante-me, ó Senhor, a força de atravessar o vale da sombra da morte de modo que, ao sair do outro lado, eu seja uma pessoa melhor, mais compassiva, mais aproveitável por ti como testemunha e mais útil ao meu irmão como servo."

Uma fé assim deve ter tido uma influência vital na vida de Rute.

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