A GUERRA ESPIRITUAL, A
PALAVRA DE DEUS E O DILEMA DE JÓ
A história de Jó é uma história de guerra
espiritual que se dá, não apenas no íntimo, mas que também tem seus reflexos
na teologia, nas estruturas e nas relações.
É uma guerra onde o objetivo principal não é o
de medir forças e ver quem tem mais poder, mas de nos transformar a fim de
compreendermos com maior clareza os propósitos eternos de Deus.
Não será uma abordagem voltada para a dimensão
missionária da igreja, mas sim para o processo transformador que a luta
espiritual desencadeia.
É neste contexto que pretendo refletir sobre
guerra espiritual vivenciada por Jó. A forma como ele a enfrentou e as mudanças
que ela trouxe sobre sua vida, teologia e relação com Deus e o próximo, serão
o objetivo desta pequena reflexão.
O cenário do guerra
Os primeiros dois capítulos do livro de Jó
definem o campo e os personagens deste conflito. Temos de um lado Deus que
nos é apresentado como o Senhor soberano sobre tudo o que acontece na terra e
no céu. As ações dos anjos e dos homens não lhe escapam aos olhos. Walter
Wink afirma que "a fé no Israel primitivo, na verdade não tinha lugar
para Satanás. Somente Deus era o Senhor e tudo o que acontecia, para o bem ou
para o mal, era atribuído a Deus. "Eu mato, e eu faço viver; eu firo, e
eu saro; diz o Senhor" .
Para o Velho Testamento, Deus sempre era a
causa primeira e última de tudo o que acontecia no céu e na terra; ele assume
total responsabilidade sobre o bem e o mal. Este é um conceito importante que
veremos na forma como Jó enfrenta seu conflito espiritual.
De outro lado, temos o próprio Satanás, que se
apresenta diante de Deus junto com os "filhos de Deus". Ele nos é
apresentado como um acusador, expressão usada no Novo Testamento para definir
seu papel. Ele levanta suspeitas quanto às motivações de Jó em ser tão
íntegro e reto diante de Deus. Suas dúvidas colocam sob suspeita o testemunho
de Deus e, consequentemente, as relações entre Deus e o homem. Ele não tem um
poder próprio e não age independentemente de Deus. Suas ações, Deus assume
como sendo suas próprias ações quando afirma que Satanás o havia
"incitado contra ele (Jó), para o consumir sem causa" (Jó 2:3b).
Satanás também reconhece isto ao dizer a Deus "estende, porém, a tua
mão, toca-lhe nos ossos e na carne, e verás se não blasfema contra ti na tua
face!" (Jó 2:5).
Embora a maldade tenha sido proposta e
executada por Satanás, ele próprio reconhece que é a mão de Deus, em última
análise, a responsável pelas aflições de Jó. Satanás não é um ser autônomo,
independente, com liberdade plena para agir e fazer o que lhe interessa.
Por fim temos Jó, aquele sobre quem Satanás
levanta suas suspeitas e que, aos olhos de Deus, é um homem íntegro, reto,
temente a Deus e que se desvia do mal. O alvo das acusações de Satanás é o
homem em sua relação com Deus.
Ele não duvida do que Deus afirma sobre seu
servo Jó. Sua dúvida repousa sobre as motivações, as intenções secretas da
devoção de Jó. Estas suspeitas não comprometem apenas as intenções de Jó mas,
sobretudo, a aliança que Deus estabelece com seu povo.
A tese levantada é a de que ninguém adora e
serve a Deus por nada. Por detrás de toda a retidão e integridade, o homem
esconde sua verdadeira motivação que é a recompensa que espera receber de
Deus. Satanás duvida que alguém possa amar a Deus sem esperar alguma
retribuição. Se as suspeitas de Satanás forem confirmadas, ele encontra a
justificação para sua própria queda.
O centro da guerra espiritual se dá na arena do
conflito relacional e afetivo e não no do poder.
A estratégia de Satanás
Deus aposta no poder do amor, do relacionamento
que existe por causa do afeto. Este é o poder que ele dispõe para enfrentar a
aposta que Satanás propõe. Por natureza, é um poder frágil, cuja força está
em cativar o coração e obter deste uma resposta igualmente afetiva e amorosa.
A guerra espiritual, na perspectiva de Jó, não
é uma disputa de poder entre duas forças que se digladiam buscando provar
quem é maior e o mais forte. Antes, é um conflito entre Deus, que ama
gratuitamente e incondicionalmente e o acusador que usa todos os recursos
possíveis para provar a impossibilidade deste amor. O que está em jogo na
aposta entre Deus e Satanás é a relação de Jó com seu Senhor.
Numa outra cena semelhante, a da tentação no
deserto, o que está em jogo ali é também a mesma coisa. Quando Satanás se
aproxima de Jesus para tentá-lo, a primeira pergunta foi: "se és Filho
de Deus, manda…" A dúvida lançada não era em relação ao poder de Jesus
de transformar pedras em pães ou saltar do alto do templo e ordenar aos anjos
que lhe socorressem. A dúvida era em relação à voz que ele acabara de ouvir
no Jordão dizendo: "este é o meu Filho amado em quem tenho o meu
prazer".
A preocupação de Satanás não está no poder de
Jesus para transformar pedras ou dar qualquer show que demonstre sua
habilidade em manipular as forças cósmicas; sua preocupação está em levantar
suspeitas, colocar sob dúvidas e, por fim, arruinar a relação única que o
Filho tem com o Pai.
Durante toda a vida e missão de Jesus, sua luta
espiritual foi preservar o vínculo amoroso, afetivo e obediente que ele tinha
em relação ao Pai. Seu último suspiro, depois de toda a vergonha e humilhação
do Calvário, foi mais uma vez afirmar seu amor ao Pai dizendo: "Pai, em
tuas mãos entrego o meu espírito".
Foi esta relação de amor e afeto que venceu o
pecado, que trouxe o triunfo da cruz. A cruz é o triunfo do amor sobre o
poder. A opção pelo poder é uma opção maligna. É por isto que Jó recusa o
caminho tão comum e popular da guerra espiritual moderna, o do dualismo, que
vê o mundo dividido entre dois grandes poderes, duas grandes forças que
disputam o domínio e o controle dos homens e da história.
Recentemente, foi publicado no Brasil um livro
sobre a batalha espiritual que define a batalha espiritual com os seguintes
dizeres: "Há no mundo dois reinos em conflito, duas forças que se chocam
em combate pelo destino eterno dos seres humanos, dois poderes em confronto:
O poder das trevas contra o poder da luz".
Para o editor, o mundo está literalmente
dividido entre duas grandes forças, uma do bem e outra do mal, e que
precisamos urgentemente optar por um lado, sacar as armas espirituais e partir
para defender o ameaçado reino do Senhor Jesus.
Jó não vê o mundo assim. Para ele, o Senhor
reina. Logo após ter sido violentamente afligido pelas catástrofes provocadas
por Satanás, ele não diz: "O Senhor deu e Satanás tomou, agora devo
amarrar e reivindicar o que me foi tirado"; pelo contrário, sua
afirmação revela que, mesmo tendo sido Satanás o autor de toda a desgraça que
sobreveio a ele e sua família, ele continua colocando Deus no centro de todos
os acontecimentos ao declarar: "o Senhor deu, o Senhor tomou, bendito
seja o nome do Senhor".
Quando abraçamos o dualismo, a guerra
espiritual transforma-se numa disputa de poder; temos que provar quem é mais
forte, mais competente. Entramos na arena criada pelo próprio Satanás e
passamos a lutar com suas armas. Optamos pelo poder, pelo domínio, e caímos
na grande armadilha que ele nos preparou. Jesus, quando provocado, nunca se
valeu do seu poder para se auto afirmar perante Satanás ou mesmo o mundo. Um
dos ladrões que fora crucificado com ele disse-lhe: "Não és tu o Cristo?
Salva-te a ti mesmo e a nós também", no entanto, Jesus não precisou dar
nenhuma prova do seu poder para mostrar que era de fato o Cristo de Deus,
porque o seu poder fora definido na voz do Jordão.
Um dos perigos que a guerra espiritual trás é o
de induzir-nos a usar as mesmas armas de Satanás, as armas do poder. O mundo
não está dividido entre duas grandes forças. Por isto, como afirma C. S.
Lewis, não há uma guerra espiritual mas sim, uma rebelião interna e o rebelde
encontra-se sob controle. O poder que venceu o pecado foi o poder do amor, da
encarnação, da entrega, da doação. Esta é a arma da nossa guerra. O que
Satanás queria era mostrar que ninguém ama a Deus por nada, que ninguém busca
e serve a Deus simplesmente por que Deus é Deus; que a integridade e retidão
de Jó nada mais eram do que artifícios para conquistar os favores de Deus.
É importante notar que as armas de Deus não são
as mesmas de Satanás. Enquanto Satanás se vale da violência, destruição,
sofrimento e dor, mostrando seu arsenal poderoso, Deus se vale da aliança
feita pelo seu nome.
Esta compreensão dualista da guerra espiritual
que tomou conta da igreja evangélica no Brasil e na América Latina tem
causado outras conseqüências previsíveis como o surgimento da teologia da
prosperidade e a ambição pelo poder político. Ambos são reflexos de uma mesma
visão espiritual que coloca os crentes dentro da arena criada Satanás onde
ele mesmo é quem distribui as armas. Na luta pelo poder, seja ela qual for,
Satanás será sempre o vencedor. As armas de Deus são outras, seu poder
transforma a vida e a alma humana, nos livra das ambições do poder, nos
tornam mais submissos e obedientes a ele e sua Palavra, mais comprometidos
com o seu reino e sua justiça.
As transformações em Jó
Como já vimos, o drama de Jó reflete uma aposta
que Deus e Satanás fizeram em relação às motivações secretas que levam-no a
ser íntegro e reto. Deus aposta na resposta do amor, e Satanás na da
retribuição como expressão do egoísmo. O sofrimento imposto a Jó é para
provar de que lado ele vai ficar.
Os amigos entram em cena e logo mostram que sua
teologia reforça o argumento de Satanás. Para eles a lógica é simples: Deus
abençoa o justo e pune o pecador, portanto, se Jó esta sofrendo, é porque
pecou. Sendo assim, ele deveria reconhecer seu pecado, confessá-lo, a fim de
receber de volta o que lhe havia sido tirado.
Noutras palavras, Jó deveria buscar a Deus, não
por causa de Deus, mas por causa dele mesmo. Ele era a razão da sua fé e o
objeto do seu amor. Jó, no princípio embora adepto desta teologia da
retribuição, rejeita este argumento e reafirma sua inocência.
Na sua luta espiritual, ele tem uma opção em
três: reconhecer que seus amigos têm razão e que Deus é justo, o que o
levaria a negar sua inocência e a buscar a Deus por causa de si mesmo;
reconhecer que seus amigos têm razão e que ele é inocente, o que o levaria a
negar a Deus, e reconhecer que Deus é justo e que ele é inocente, o que o
levaria a negar a teologia dos amigos.
Jó opta pela última. Esta opção o leva a
experimentar uma profunda transformação na sua linguagem que Gustavo
Gutiérrez chama de "Linguagem Profética e a Linguagem da
contemplação".
A linguagem profética nasce da constatação que
Jó teve de que há outros inocentes como ele no mundo, que sofrem a opressão
daqueles que ambicionam o poder. Ele começa a falar para os pobres e
sofredores com a linguagem de quem conhece a dor do inocente.
A linguagem da contemplação nasce da revelação
de Deus como Senhor livre e soberano, cujos atos e justiça não são
determinados pelo homem, mas pela gratuidade do seu amor. Ao reconhecer a
grandeza e majestade de Deus, Jó se curva e declara que agora seus olhos o
vêem. O propósito da guerra espiritual na experiência de Jó não foi determinada
pela sua capacidade de vencer as catástrofes, nem mostrar que o poder de Deus
é maior que o de Satanás. O propósito foi o de render seu coração,
transformar sua teologia (uma vez que ele pensava como seus amigos) e viver
um encontro com Deus que transformou sua linguagem sobre Deus.
A derrota de Satanás não foi medida pelo poder,
mas pela rendição ao amor gratuito e incondicional de Deus. Penso que esta
foi também a guerra espiritual vivida por Pedro quando o próprio Senhor o
chamou e disse: "Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos
peneirar como trigo. Eu, porém, roguei por ti, para que a tua fé não
desfaleça; tu, pois, quando te converteres, fortalece os teus irmãos"
(Lc. 22:31, 32).
A resposta de Jesus a Satanás que reclamou o
desejo de peneirar a Pedro não foi aquela clássica de nossas batalhas
espirituais: "tá amarrado". Pelo contrário, Jesus disse apenas que
iria orar por ele para que sua fé não desfalecesse.
Era necessário que Pedro passasse pela peneira.
Sua índole era por demais impulsiva. Suas armas de guerra precisavam ser
neutralizadas para que pudesse humildemente confessar seu amor ao Senhor.
Tudo o que Jesus queria era uma declaração de
amor, e não a arrogância do poder. Pedro foi também transformado pelo poder
do amor de Deus e experimentou uma nova linguagem para falar de Deus.
A guerra espiritual e o silêncio de Deus A luta
espiritual vivida por Jó, Jesus e Pedro, tem um elemento comum que é o
silêncio de Deus. Parece-me que em todas elas Deus permite aquilo que Jesus
afirma acerca de Pedro: deixar que Satanás o peneire. O Silêncio de Deus não
é o silêncio da indiferença, mas o da oração e da intercessão.
A resposta final deste silêncio é a afirmação
de que, apesar do sofrimento imposto por Satanás, nosso coração continua
sendo eternamente de Deus. A afirmação do amor que temos pelo Senhor é a
resposta final de toda a luta espiritual.
Não se trata de uma disputa de poder, de
demonstrar quem é mais poderoso e domina o universo; esta tentação Jesus
venceu no deserto.
Deus não está preocupado em demonstrar seu
domínio e soberania porque ele é de fato o Senhor absoluto e soberano e isto
nunca foi colocado em disputa; sua glória ele não divide com ninguém, nem
mesmo com Satanás.
A razão da guerra espiritual é demonstrar a quem
nosso coração pertence. Diante desta finalidade, Deus se faz silencioso na
espera de nossa resposta. Em algumas situações bíblicas onde Satanás impõe o
sofrimento como instrumento de desmascaramento de nossas motivações mais
secretas, vemos que Deus guarda o silêncio esperando nossa resposta. Foi
assim com Jó, com Pedro e com o próprio Senhor. Também foi assim com Abraão
quando leva seu filho Isaque para o altar do sacrifício. O papel de
"acusador dos irmãos" mostra que Satanás desempenha um lugar importante
no plano eterno de Deus: o de denunciar nossas máscaras e hipocrisias. É por
isto que Jó, em momento algum de sua guerra espiritual, trata com Satanás,
mas com Deus. Deus é seu advogado e justificador, é ele quem defende sua
causa e é dele que Jó espera receber a absolvição.
Conclusão
A percepção da guera espiritual como uma
disputa pelo poder de domínio e controle do homem, do mundo e da história
acabou levando a igreja evangélica a optar pelas mesmas armas de Satanás, e
perder o sentido mais profundo e verdadeiro da luta espiritual que é o de nos
transformar, transformar nossos conceitos, valores e teologias que tentam
enquadrar Deus nos esquemas malignos do poder. Nosso chamado é para subir ao
Calvário, para sofrer todas as implicações do amor e do serviço, e resistir
todas as investidas malignas que tentam nos afastar do caminho para
Jerusalém. A vitória espiritual é a resposta do amor incondicional e
desinteressado a Deus e ao seu reino. Enquanto permanecermos íntegros nas
nossas motivações e desejos; enquanto permanecermos no caminho do discipulado
e da cruz; enquanto permanecermos obedientes e submissos ao Senhor e sua
Palavra, permaneceremos do lado de quem é e sempre será o vencedor.
Artigo publicado com autorização do autor.
Ricardo Barbosa de Sousa
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segunda-feira, 11 de maio de 2020
APRENDENDO COM JÓ (PARTE 9)
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