Propósito
Quanto ao propósito este não aparece tão claro
no Evangelho, e os estudiosos não são unânimes quanto a ele. A seguir temos
algumas sugestões de propósito que podem ser assumidas.
1.
Propósito Apologético
Marcos escreveu para uma comunidade cristã de
maioria gentílica, e talvez tenha sido o seu propósito demonstrar porque Jesus
foi rejeitado pelo povo judeu. Então, podemos entender baseados nesta posição,
porque o evangelho apresenta duas características mui distintas, tanto a
popularidade, como a oposição a Cristo. A.B. Bruce observa que esse paradoxo
pode ser encontrado a partir dos dois primeiros capítulos, e se estendem
praticamente até o fim do Evangelho.[1]
Isto tem levado autores como Robert H. Gundry a
defender que o Evangelho de Marcos é uma apologia da cruz de Cristo, escrito
com fins evangelísticos para pessoas que tinham receio de crer na vergonha da
cruz, num mundo onde a fraqueza era desprezada, e o poder estimado.[2]
Ainda, este Evangelho teria um propósito
apologético para (1) mostrar porque Jesus como o Messias, era inocente diante
das acusações dos judeus, e que o seu sofrimento era parte do propósito de
Deus; (2) para expor por que Jesus, não declarou publicamente ser ele o
Messias; (3) para apresentar as obras de Jesus como triunfantes sobre as forças
demoníacas.[3]
2. Propósito Pastoral
Se a datação mais aceita estiver correta este
Evangelho foi escrito entre 65-67 d.C., durante a perseguição de Nero. O grande
incêndio de Roma em 64 d.C., possivelmente provocado pelo próprio imperador
Nero, mas que fora atribuído aos cristãos. Por este motivo os cristãos estavam
sendo perseguidos, e muitos estavam sendo martirizados. Marcos então, teria
escrito para fortalecer estes cristãos que se encontravam abatidos e confusos
com o sofrimento, morte e perseguições.
3. Propósito Doutrinário
Esta posição sugere que o propósito deste
Evangelho seria preparar material para o discipulado. A própria tradição indica
este propósito conforme já foi citado Clemente de Alexandria em sua obra Hypotyposeis.
O ensino dos apóstolos transmitidos oralmente
precisava ser registrado, e comunicado aos novos discípulos, para que a
mensagem do evangelho não se desvirtuasse, e assim fosse mantido fielmente o
ensino de Cristo. Conforme bem afirma Pohl que
uma igreja que
negligencia a recordação do Jesus terreno, em breve também não terá mais o
Cristo verdadeiro de hoje, que é o mesmo ontem e para sempre. Um espírito que
não recorda o Cristo de ontem não é um Espírito Santo. Também nisto reside o
verdadeiro impulso para a transmissão da tradição de Jesus entre os primeiros
cristãos, e para sua conservação definitiva e quádrupla no Novo Testamento.[4]
4. Esclarecer o segredo Messiânico
Uma posição que tornou-se comum entre os
estudiosos de Marcos, é o conceito do “segredo Messiânico”.[5] Segundo esta posição Marcos em seu Evangelho desenvolve
gradativamente a exposição do conceito de Messias. O mistério da pessoa de
Jesus que já deixava todos curiosos (1:22,27; 3:21,22,30; 4:41; 6:2,14s; 8:11).
Os demônios o reconhecem, mas recebem a ordem de guardar silêncio (1:25,34;
3:12; 5:6-8). Milagres poderosos deixam transparecer quem ele é, mas os
presentes recebem a ordem de guardar silêncio (1:44; 5:43; 7:36; 8:26). Muitos
dos atos do Senhor os próprios discípulos não entendiam (6:52; 8:17s). Mas
depois gradativamente Cristo aceita ser reconhecido como Senhor, Deus e
redentor, primeiro, pelos discípulos (8:29; 9:7), depois pelos peregrinos
(10:47-49), na entrada triunfal (11:9-10), diante do Sinédrio (14:61s), de
Pilatos (15:2), e finalmente, perante todo o povo de Israel (15:9,12,26,32,39).
Alguns têm sugerido que é por causa deste segredo
intencional do próprio Senhor, que a sua messianidade não foi descoberta no
início de seu ministério, e que somente foi exposta abertamente após a sua
morte e ressurreição.
5.
Propósito Evangelístico
Segundo essa sugestão Marcos teria escrito este
livro com o propósito evangelístico. Isto explicaria porque o livro não é uma
biografia, pois ele escreve para pessoas que conheciam os fatos básicos sobre o
ministério de Jesus.
A ênfase de todo o livro recai sobre a última
semana de Cristo. Marcos apresenta o sofrimento, a vergonha da cruz, e sua
morte; e da perspectiva da glória de Cristo, seu poder e sua vitória final.
Podemos supor que “Marcos escreveu seu Evangelho para ser usado na tarefa
missionária da Igreja, para prover material para os evangelistas e missionários
da Igreja de Roma.”[6]
Esta posição casaria muito bem com a
característica literária do livro. Merril C. Tenney coloca que “as suas
descrições breves, as suas frases agudas, as suas aplicações diretas da
verdade, são exatamente aquilo que um pregador da rua usaria ao pregar Cristo a
uma multidão promíscua.”[7]
Podemos concluir que Marcos escreveu este
Evangelho com um propósito evangelístico, embora isso não exclua
necessariamente os outros propósitos como sendo secundários.
Estrutura
do Livro
Antes de esboçar a estrutura do Evangelho de
Marcos devemos perguntar qual foi o critério que ele utilizou para compor a
estrutura do seu Evangelho. Quanto a forma como o assunto se encontra
distribuído no Evangelho de Marcos os estudiosos tem sugerido as seguintes
classificações.
1.
Esboço Cronológico
Segundo esta proposta
de estrutura do texto, Marcos teria arranjado seu material seguindo a ordem dos
eventos históricos como de fato eles ocorreram.
2.
Esboço Topológico
Marcos teria arrumado o
seu material de acordo com os lugares que Jesus visitou, começando pela
Galiléia e terminando em Jerusalém sem necessariamente seguir a seqüência
histórica dos acontecimentos.
3.
Esboço Tópico
Esta proposta sugere que Marcos teria
organizado seu material por assuntos, dentro de um esquema cronológico mais
amplo. A sua estrutura seguiria temas comuns.
4.
Esboço Cristológico
Esta divisão pressupõe que o livro se propõe a
revelar o “segredo Messiânico”. Aproveitando a seqüência geográfica ou
cronológica, o autor teria desvendado este segredo gradativamente, segundo se
encontra na disposição de assuntos que ele estabeleceu.
Nenhuma destas opções são totalmente
satisfatórias para responder sobre a cronologia da vida de Jesus levantadas
pela harmonia dos Evangelhos. O Dr. Nicodemus sugere que
Marcos retrata fielmente a seqüência histórica dos eventos,
quando assim ele o indica (1:14; 1:21; 1:29; 9:2, etc.), e que um arranjo
tópico ou topológico não significa necessariamente que ele editou e modificou
os fatos, ou as palavras de Jesus.[8]
A
Estrutura
A divisão abaixo não segue rigidamente nenhum
dos esboços que foram apresentados acima, e sim uma síntese deles.
I. O início do ministério de Jesus (1:1-13)
A.
Seu precursor, 1:1-8
B.
Seu Batismo, 1:9-11
C.
Sua tentação, 1:12-13
II.
O ministério de Jesus na Galiléia (1:14-6:29)
A.
O ministério inicial na Galiléia, 1:14-3:12
B.
O ministério posterior na Galiléia, 3:16-6:29
III.
O ministério em outras localidades (6:30-9:32)
A.
Nas praias orientais do Mar da Galiléia, 6:30-52
B.
Nas praias ocidentais do Mar da Galiléia, 6:53-7:23
C.
Na Fenícia, 7:24-30
D.
Em Decápolis, 7:31-8:10
E.
Nas regiões de Cesaréia de Felipe, 8:11-9:32
IV.
O Ministério Final na Galiléia (9:33-50)
V. O Ministério na Judéia e Peréia (cap. 10)
A.
Ensino sobre o divórcio, 10:1-12
B.
Ensino sobre as crianças, 10:13-16
C.
O jovem rico, 10:17-31
D.
Jesus prediz sua morte, 10:32-34
E.
O pedido dos dois irmãos, 10:35-45
F.
A cura do cego Bartimeu, 10:46-52
VI.
O ministério em Jerusalém (caps. 11-13)
A.
A entrada triunfal, 11:1-11
B.
A purificação do Templo, 11:12-19
C.
Controvérsias finais com líderes judaicos 11:20-12:44
D.
O sermão escatológico no Monte da Oliveiras, cap. 13
VII.
A Paixão de Jesus (caps. 14-15)
A. Jesus é ungido, 14:1-11
B.
A última Ceia, 14:12-25
C.
Jesus prediz a negação de Pedro, 14:26-31
D.
Jesus no Getsêmani, 14:32-42
E.
A prisão, julgamento, e a morte de Jesus, 14:43-15:47
VIII.
A Ressurreição de Jesus (cap. 16)
Local da Escrita
A tradição da Igreja antiga quanto a autoria e
aos destinatários aponta inconteste para Roma. Somente uma voz tardia e isolada
propõe que Marcos escreveu o seu Evangelho em Alexandria, no Egito.[9]
1. A Comunidade Judaica em Roma
A dispersão
dos judeus foi um acontecimento de grande importância para a preparação da
vinda de Cristo, e para o progresso da Igreja Cristã. Quando ocorreu o
Pentecostes os judeus já se encontravam espalhados por todo o império romano
(At 2:5-11).
A informação
mais antiga sobre a comunidade judaica na capital romana remonta ao ano 139
a.C.. Calcula-se que o número de judeus no início do século I aproximava-se de
40.000. Alguns anos mais tarde a capital romana chegou a ter mais judeus do que
na cidade de Jerusalém. Muitos foram para lá como escravos de guerra; outros
foram por motivos religiosos, ou seja, para alcançar novos prosélitos (Mt
23:15), mas muitos poderiam ter ido por causa do comércio.[10]
Com a
confiança de César conquistada por Herodes, o Grande, a influência judaica
cresceu no império romano. Disto resultou alguns privilégios adquiridos pelos
judeus como a livre guarda do sábado, eram isentos do serviço militar como
legionários romanos, e desfrutavam de liberdade religiosa em suas reuniões sem
a presença de soldados romanos, que eram gentios.
Com isso o
movimento crescente do cristianismo tendo nascido em berço judeu, também
desfrutou destes benefícios, pois para os de fora eles não passavam de uma
facção judaica em crescimento.
2. A Igreja em Roma
Provavelmente
a Igreja de Roma começou com romanos, ou judeus residentes na capital romana
que se converteram no dia do Pentecostes. Em Atos há uma referência aos
“visitantes vindos de Roma” (At 2:10).
Adolf Pohl
aponta seis características da Igreja Cristã em Roma nos dias de Marcos.
Primeiro, ela era uma das mais antigas e rica em tradições dentro do império
romano. Tácito confirma o grande número de cristãos na capital império. Os
cristãos tinham na capital de Roma adquirido uma posição de preeminência entre
as demais igrejas do império. Na epístola aos romanos vemos Paulo num bom relacionamento
com ela (Rm 1:8; 16:16). A maioria da igreja ali era gentílica. Em Roma vivia
uma comunidade cristã cheia de mártires. Com o desaparecimento dos primeiros
líderes daquela comunidade, surgiu Marcos para intervir e garantir à igreja a
tradição de Jesus.[11]
Destinatários
O
Evangelho de Marcos foi escrito para a Igreja de Roma. Hurtado trata o assunto
com certa superficialidade chegando a concluir sem maiores averiguações que “a
única conclusão positiva que podemos tirar é que Marcos escreveu para cristãos
gentios moradores fora da Palestina.”[12]
Contudo, discordo dele pois o livro apresenta algumas evidências que nos levam
a pensar que Marcos escreveu seu Evangelho para os cristãos que moravam em
Roma.
Em primeiro lugar, devemos observar que os cristãos
romanos como destinatários são indicados pela mais primitiva tradição da
Igreja.
Segundo, Marcos explica costumes e traduz
palavras judaicas, o que seria totalmente desnecessário para uma audiência
judaica.
Não podemos ignorar os latinismos. Contra esta
evidência poderia ser argumentado que, pelo fato de Marcos viver num mundo
dominado politicamente e culturalmente por Roma, esta influência dos latinismos
seria algo muito comum. Mas devemos perguntar porque estes latinismos não são
“tão comuns” nos outros evangelhos? Pohl falando da influência do idioma latino
coloca que “é claro que latinismos não precisam estar apontando para a Itália,
mas são possíveis em todo lugar aonde os romanos chegaram. Só que no evangelho
de Marcos eles são especialmente numerosos e de traços característicos”.[13]
Existe uma possível referência a um membro da
Igreja de Roma. Simão Cireneu, é apresentado como pai de Alexandre e Rufo (Mc
15:21), e Rufo morava em Roma na época que Paulo escreveu aos romanos (Rm
16:13), ou seja 57-60 d.C., poucos anos antes de Marcos escrever (cerca de
65-67 d.C.). Quando Marcos escreve o seu Evangelho, escreve pressupondo que os
seus leitores conhecessem Alexandre e Rufo.
Data da Escrita
O Evangelho
segundo Marcos foi escrito em 65-67 d.C.. Algumas razões pelas quais essa data
é preferível.
Primeiro, esta
data é preferível, pois, Marcos possivelmente escreveu após a morte de Pedro,
que ocorreu entre 64-65 d.C., durante a perseguição de Nero. É o que afirmam o
prólogo Antimarcionita (180 d.C) e Irineu (Adv.
Haer. 3:1.2).[14]
Segundo, o Evangelho de Marcos foi
provavelmente o primeiro Evangelho a ser escrito, e talvez usado por Mateus e
Lucas, o que torna uma data após 70 d.C. muito improvável.[15]
A destruição de Jerusalém ocorreu em 70 d.C., e
não encontramos neste Evangelho nenhuma menção do cumprimento do sermão
escatológico de Jesus, e da sua referência sobre a futura angústia que viria
sobre Jerusalém.[16]
Ênfases Teológicas
A Cristologia de Marcos é admirável, ele
possuía um entendimento surpreendente acerca de quem Jesus era, fazendo
observações, narrando detalhes, atos e reações do Senhor em momentos
específicos de seu ministério.
Marcos apresenta Jesus como sendo verdadeiro
homem. Na Cristologia de Marcos Jesus é perfeitamente humano. Ele precisava
orar (1:35; 6:31), comer (2:16), beber (15:36), sentia fome (11:12), tocava nas
pessoas (1:41), e era tocado por elas (5:57), ele se entristecia (3:5), e se
indignava (10:14), sentia sono por causa do cansaço e era despertado após
momentos de cansaço (4:38-39). Enquanto homem o seu conhecimento é limitado
(13:32), de modo que se volta para ver quem lhe tocou (5:30), possuí corpo
humano (15:43), um espírito humano (2:8), e inclusive poderia morrer (15:37).[17]
Marcos apresenta Jesus como sendo verdadeiramente
Deus. Na Cristologia de Marcos não há negação da sua divindade. Ele descreve
Jesus como tendo domínio soberano sobre o reino da enfermidade (1:40-45;
8:22-26; 10:46,52;), dos demônios (1:32-34), e da morte (5:21-24,35-43), sobre
os elementos da natureza (4:35-41; 6:48; 11:13-14,20); prediz o futuro (8:31;
9:9,21; 10:32-34; 14:17-21), conhece o coração das pessoas (2:8; 12:15),
vencendo a morte (16:6).[18] De acordo com Marcos as duas naturezas de Cristo, divino e
humano, se encontram em perfeita harmonia na pessoa de Jesus. E isto pode ser
percebido nas seguintes passagens (4:38-39; 6:34,41-43; 8:1-10; 14:32-41).
Marcos apresenta Jesus como o Filho de Deus.
Esse título é usado para descrever a sua messianidade. Marcos inicia seu
Evangelho identificando João Batista como o cumprimento da profecia de Ml 3:1 e
Is 40:3, como aquele que viria e prepararia o caminho para o “Messias”. A voz
que surge do céu dizendo “Tu és o meu Filho amado; em ti me agrado” (1:11 NVI).
Jesus é aquele a quem os anjos servem (1:13). O seu sangue é oferecido em favor
de muitos (10:45, cf. 14:24). Ele batiza com Espírito Santo (1:8), nomeia os
seus próprios embaixadores (3:13-19), tem autoridade para mandar que os homens
lhe sigam e o recebam (8:34; 9:37); na transfiguração manifesta parcialmente a
glória futura (9:11); e declara que virá outra vez na glória de seu Pai (8:38),
nas nuvens com grande poder e glória, quando enviará seus anjos para recolher
seus eleitos (13:26-27).[19] Precisamente foi condenado por ter confirmado a sua divina
filiação (14:61-63).
Marcos apresenta Jesus como o Redentor. Jesus
numa de suas declarações afirma que ele veio para “dar a sua vida em resgate
por muitos”(10:45). Marcos descreve um Cristo que haveria de sofrer, e dedica
uma grande porção de sua narrativa para expor a Paixão de Cristo, mais do que
os outros Evangelhos.[20]