O EVANGELHO DE MARCOS
Podemos encontrar a narrativa de três passagens
contendo detalhes que pertencem ao acervo específico do Evangelho de Marcos.
Alguns dos estudiosos têm encontrado nestas passagens evidências como se o
autor sem querer se identificar de forma objetiva dissesse: “olha esse aqui sou
eu”!
A primeira passagem é 10:17, que relata sobre
“um homem correu em sua direção” e, “Jesus olhou para ele e o amou” (Mc 14:21
NVI). Não temos aqui o nome deste homem que vai ao encontro de Jesus, mas
a forma como Jesus o olhou “com carinho”; nem Mateus (19:16-30), nem Lucas
(18:18-30), mas somente Marcos poderia saber o modo deste olhar.
Em 14:13-16 encontramos a descrição de “um
homem carregando um pote de água virá ao encontro de vocês” (NVI).
Aparentemente este homem sabia de tudo, pois ele já esperava pelos dois
discípulos, e sem perguntas os conduz pelo caminho e os leva até uma
determinada casa. Novamente, Marcos usa o recurso de apresentar um personagem
sem identificá-lo, apenas indica que morava em Jerusalém, mas que certamente
era um outro discípulo, pois Jesus sabia de sua disponibilidade para preparar a
última ceia. Podemos deduzir que este poderia ser Marcos, pois a casa de sua
mãe, algum tempo depois do Pentecostes viria a se tornar um ponto de referência
para os cristãos em Jerusalém (At 12:12), e que lugar poderia ser mais
sugestivo, senão a casa onde ocorreu a última ceia?
A narrativa de “um jovem” que foge desnudo (Mc
14:51-52). Este episódio em si é desprovido de relevância, a não ser que fosse
importante para o autor do Evangelho. O autor nos fornece aqui alguns detalhes
significantes, Stott comenta que “o jovem que seguiu Jesus era claramente rico,
porque usava um lençol ‘de linho’: geralmente, tais peças eram de algodão. O
terror do jovem é realçado tanto por fugir desnudo como por sua disposição de
desfazer-se de uma vestimenta tão valiosa.”[1]
2.3. O autor
Até aqui temos considerado, pelas evidências,
que o autor do segundo Evangelho era denominado como Marcos. Os estudiosos o
identificam com João Marcos de Jerusalém, por ser o único “Marcos” que os
escritores do NT mencionam.
Lucas e Paulo em seus escritos nos fornecem
algumas informações acerca de João Marcos. Na residência de sua mãe, que se
chamava Maria, se reuniam os cristãos da igreja de Jerusalém (At 12:12). Ele
era primo de Barnabé (Cl 4:10). Participou da primeira viagem missionária com
Paulo e Barnabé, contudo não foi bem sucedido, e regressou para Jerusalém (At
13:13), por motivos que desconhecemos (At 12:35; 13:5); Paulo por causa dessa
desistência, não quis levá-lo na viagem seguinte, Barnabé não concordando,
rompeu com Paulo, e continuaram os seus esforços missionários separados um do
outro (At 15:37-41). Contudo, posteriormente Paulo menciona Marcos como seu
colaborador (Fm 24; Cl 4:10) e como lhe sendo útil para o ministério (2 Tm
4:11).[2]
Podemos concluir historicamente que, após a
morte de Paulo, Marcos passou a trabalhar com Pedro.[3] Quanto ao seu relacionamento com o apóstolo, além das
informações que recebemos por parte dos Pais da Igreja, só possuímos uma
referência do próprio apóstolo ao mencioná-lo carinhosamente como “Marcos, meu
filho” (1 Pe 5:13, NVI). Era comum entre os judeus, especificamente entre os
rabinos chamar os seus discípulos de filhos, como também os discípulos se
dirigirem aos seus mestres, como “pai”.[4]
Este Evangelho possui similaridades com os sermões
de Pedro. Ainda analisando o estilo literário, podemos observar que o Evangelho
de Marcos “segue os eventos históricos sobre a vida de Jesus que aparecem nos
sermões de Pedro em Atos 3:13-14 e 10:37-42”.[5] Como já observamos, o nome de Marcos está intimamente
ligado ao de Pedro, logo, não nos surpreende que ambos tenham discursos
similares.
Além das similaridades com os sermões de Pedro,
possuímos outras evidências de uma possível influência do apóstolo. C.E. Graham
Swift coloca o assunto assim
o evangelho
começa com a chamada de Pedro, sem referência alguma à natividade de Cristo. O
evangelho focaliza o ministério na Galiléia, e mais especialmente nos arredores
de Cafarnaum, cidade de Pedro. (...) São omitidas alguns pormenores que
destacam a pessoa de Pedro, em a narrativa da confissão de Pedro, em Cesaréia
de Filipe, e do seu andar sobre o mar. São relatadas minunciosamente as suas
derrotas, como a negação do mestre.[6]
Em resumo, podemos dizer que Deus soberanamente
preparou aquele que haveria de escrever o Evangelho. Augustus Nicodemus sugere
“Marcos certamente conheceu a Jesus em Jerusalém, andou com os principais
líderes apostólicos, e deles ouviu muitas outras coisas”.[7]
Conteúdo
do Evangelho
Este livro não é uma biografia. Marcos
tencionou apresentar a vida do mestre de forma bem resumida, enfatizando a sua
mensagem. Não pode ser considerada uma biografia no sentido moderno da palavra.
Larry W. Hurtado declara que “a motivação forte conducente à redação dos
evangelhos não partiu de interesses biográficos, pelo menos como os entendemos
hoje, mas nasceu do desejo de incrementar a fé em Jesus, e a ela dar forma”.[8]
Vejamos algumas razões porque esse Evangelho
não pode ser considerado uma biografia. O Evangelho de Marcos não faz uma
descrição física de Cristo. Não é fornecido nenhum detalhe a respeito da
altura, peso, cor, enfim, nenhuma característica física de Cristo foi
comentada.
O segundo Evangelho não contém a narrativa do
nascimento e infância de Jesus. Não encontramos neste Evangelho como vemos em
Mateus e Lucas a genealogia, a narrativa do nascimento, nem mesmo algumas
pinceladas da infância do Senhor. Podemos observar que a começar pelo título há
uma ênfase na mensagem do Senhor, sem necessariamente anular o seu apregoador.[9]
Mesmo a narrativa que encontramos do ministério
de Cristo não é exaustiva. O autor nos fornece o início ministerial de Cristo
dizendo que “ele percorreu toda a Galiléia, pregando nas sinagogas” (Mc 1:21;
1:39, NVI). Neste dado já possuímos um salto histórico enorme, pois o narrador
omite todos os detalhes e seqüências de sua mensagem como também, desta
trajetória de Cristo em seu ministério inicial. Pohl corretamente diz que
é evidente que
Marcos não tinha a intenção de dar o mesmo peso aos diversos aspectos da vida
de Jesus. Seu interesse primordial era sua morte, porque ali ficou demonstrado
definitivamente – sem contestação por toda a eternidade – quem é Jesus e como é
Deus.[10]
Jesus iniciou o seu ministério na região da
Galiléia. Sabemos que a região da Galiléia abrangia uma vasta porção de terra,
com muitas cidades e vilas. Flávio Josefo afirma que “não somente há uma grande
quantidade de aldeias e vilas, mas também um grande número de cidades (não
menos que 240), tão populosas que a menor delas tem mais de quinze mil habitantes”.[11] Contudo, acerca deste número populacional tão volumoso
Alfred Edersheim afirma que “naturalmente deve ser um grande exagero, pois
haveria de existir naquele país uma população duas vezes mais densa que os mais
densos distritos da Inglaterra, ou Bélgica.”[12] Apesar do exagero de Josefo, podemos crer que de fato a
região da Galiléia era populosa. Apenas nesta afirmação tão resumida de todo o
ministério de Jesus na Galiléia, podemos concluir que o Evangelho de Marcos não
é uma narrativa exaustiva.
Deixou-se claro o que o Evangelho não contém,
mas o que de fato ele contém? Isto será exposto de forma mais detalhada no
tópico sobre o propósito, estrutura e ênfases teológicas do texto, podemos
ainda levantar outras características do conteúdo aqui.
Características
da Narrativa
Este Evangelho é conhecido por dar proeminência
ao evangelho. Diferentemente dos outros Evangelhos, este enfatiza mais a
mensagem do que o seu mensageiro, e isso pode ser averiguado a começar pelo seu
título (1:1). Harrison coloca que “esta mensagem divina é digna do sacrifício
da própria vida por parte do discípulo (8:35; 10:29). Deve ser proclamada a
todas as nações (13:10; 14:9). Marcos é totalmente kerygmático em sua ênfase.”[13]
Este Evangelho é conhecido como “o Evangelho da
Ação”. O Evangelho de Marcos é marcado pela descrição de um ministério ativo,
realizado por Cristo. Não encontramos o Senhor em nenhum lugar deste Evangelho
descansando. A maior parte dos sermões de Jesus são omitidos, dando maior
ênfase nas ininterruptas atividades do Senhor. Hendriksen observa que “cada um
dos primeiros onze capítulos de Marcos contém o relato de pelo menos um milagre
(1:21-28, 29-31, 32-34, 39, 40-45; 2:1-11; 3:1-6; 4:35-41; 5:1-20, 21-43;
6:30-44, 45-52, 53-56; 7:24-30, 31-37; 8:1-10, 22-26; 9:14-29; 10:46-52; e
11:12-14, 20-21)”.[14]
Este Evangelho possui uma característica
marcante por sua brevidade. Observemos que apesar de sua brevidade, ele contém
certos detalhes que são omitidos pelos outros evangelistas, como por exemplo,
2:4; 4:37-38; 6:39; 7:33; 8:23-25; 14:54, e ainda contém uma parábola que não
se encontra em nenhum outro lugar (4:26-29).[15] E também encontramos em Marcos a narrativa de dois
milagres que somente são mencionados aqui (7:31-37 e 8:22-26).[16]
É um Evangelho rico em detalhes. De fato, ele é
mais breve e sucinto que os outros Evangelhos, contudo, ele não se torna
superficial por sua brevidade. Marcos nos fornece em seu relato não somente a
ocorrência em si, mas também transmite minuciosidade em sua narrativa. Vejamos
alguns exemplos. No deserto, ele afirma que Jesus “estava entre as feras”
(1:13). Na pregação de João Batista, ele observa a ordem “creiam nas boas
novas” (1:15). Ao curar a sogra de Pedro, Jesus não somente a tocou, mas também
“a tomou pela mão” (1:31). Quanto a alguns hábitos do Senhor ele relata que,
“de madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus levantou-se, saiu de casa e
foi para um lugar deserto, e ali orava” (1:35, NVI). Estes são alguns dos
detalhes que são relatados no primeiro capítulo, contudo, é possível encontrar
maiores detalhes nos capítulos seguintes que são peculiares em Marcos, e que
não encontramos nos demais Evangelhos.[17]
Este Evangelho é conhecido por sua sinceridade.
Marcos é extremamente franco em sua narrativa, ele não hesita em mencionar a falta
de entendimento dos discípulos (4:13; 6:52; 8:17,21; 9:10,32), que a própria
família de Jesus o considerava como tendo enlouquecido (3:21), ele ainda diz
que Jesus não podia realizar milagres em Nazaré por causa da incredulidade do
povo (6:5-6). Marcos é igualmente sincero em “sua descrição das reações humanas
de Jesus. As emoções como compaixão, ira, dor, severidade, tristeza, afeto e
amor são todos atribuídos a ele”.[18]
Este Evangelho é conhecido como “o Evangelho
aos gentios”. Percebe-se uma ausência de traços judeu-cristão que é tão comum
no Evangelho de Mateus. Na história da mulher siro-fenícia, o Evangelho de
Marcos não apresenta como em Mateus, Jesus respondendo: “eu não fui enviado
senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15:24, ARC). E Jesus em seu
sermão escatológico em Mc 13, faz a seguinte observação no verso 10, “é
necessário que antes o evangelho seja pregado a todas as nações”.[19]
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