quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

APRENDENDO COM BOAZ

 

APRENDENDO COM BOAZ

 

Quem era Boaz e por que esta informação é tão significativa para nós? Embora o significado do seu nome não seja claro (parece ser algo relacionado com "rapidez" ou "força"), duas coisas importantes ficamos sabendo a respeito dele. Em primeiro lugar, Boaz é um parente de Elimeleque, um membro da família de Elimeleque. Em segundo lugar, Boaz é senhor de muitos bens. Vamos examinar uma expressão de cada vez.

 

Um parente

 

A importância crucial do elo familiar de Boaz se tornará mais clara no devido tempo. É importante, porém, que saibamos deste relacio­namento, uma vez que é apenas por causa deste parentesco com Noemi que Boaz cumpre o papel no qual mais tarde se encaixa a história. Por "família", o Antigo Testamento naturalmente se refere a uma rede de relacionamentos muito mais ampla do que o nosso conceito de uma família nuclear moderna, constituída de mãe, pai e filhos.

 

A família do Antigo Testamento consiste de todos aqueles que estão unidos sob o mesmo teto. Assim, a "família" de Noé incluía sua esposa, seus filhos e suas noras.2 A família de Jacó incluía três gerações.3 Os servos e até mesmo os estrangeiros residentes eram incluídos na família, como as viúvas e os órfãos que viviam sob a proteção do chefe da casa.4 A família no antigo Israel ficava no centro de uma série de relacionamentos ligados: com Deus, com Israel (o povo de Deus como um todo) e com a terra.

 

A família era o centro do relacionamento principal da aliança do povo com o seu Deus. Assim, os filhos de Noé com suas esposas (e os filhos, se houvesse) estavam incluídos na aliança feita com Noé.

 

 Quando Deus fez sua aliança com Abraão, todo macho (inclusive "o que tem oito dias") devia ser circuncidado. Até mesmo as criancinhas eram bem recebidas na membresia da aliança, com base única na sua participação na família. Na noite de Páscoa, um cordeiro foi pro­videnciado "para cada família". Toda a família permaneceu segura no local demarcado pelo sangue do Cordeiro. Deus operava nas famílias; o seu relacionamento com o seu povo, na aliança, focalizava a vida familiar.

 

A família era a unidade básica da estrutura social dos israelitas. Era também a unidade básica e beneficiária do sistema israelita de pro­priedade da terra, porque a terra, em última análise, pertencia a Deus e era concedida às famílias como herança.8 Portanto, na maneira de ver dos israelitas, que se consideravam o povo da aliança de Deus, as áreas social e económica estavam ligadas à família como seu centro focal.

 

A solidariedade da família era, portanto, extremamente forte no antigo Israel, e os membros da família num sentido mais amplo tinham a obrigação de ajudar e proteger uns aos outros quando houvesse necessidade. Isto se via não apenas na convicção de que o nome da família de um homem devia ser preservado em sua herança, mas também no costume do "levirato", através do qual isto se tomava possível. Conforme veremos, o papel que Boaz desempenha mais tarde na história deriva do fato de ele ser um parente: alguém da família de Elimeleque. Como que para garantir que nós não percamos a importância do ponto, o fato é repetido novamente no versículo 3.

 

Talvez valha a pena refletir que grande parte do interesse cristão pelo bem-estar da "vida familiar" nos dias de hoje tem uma ênfase totalmente diferente da solidariedade familiar do Antigo Testamento. Como J. Gladwin observa com acerto, devemos ter o cuidado de não nos concentrarmos demasiadamente em determinados padrões cul­turais da classe média ocidental, crendo serem eles necessariamente um modelo bíblico. Seria mais importante procurar, dentro de nossos próprios termos e de nossa própria cultura, descobrir maneiras de refletir a interligação dos relacionamentos familiares com a terra e com a sociedade que o Israel do Antigo Testamento conhecia em seu contexto em Deus. C. J. H. Wright escreveu:

 

Ainda que, naturalmente, não sejamos uma nação teocrática re­dimida como o era Israel, certamente podemos desejar produzir uma sociedade que refuta, num certo sentido, o triângulo dos re­lacionamentos dentro do qual a família estava estabelecida no Antigo Testamento. Isto significa uma sociedade na qual as famílias desfrutariam de um grau de independência económica com base na participação equitativa da riqueza da nação; na qual a família pu­desse sentir alguma relevância social e algum significado dentro da comunidade; na qual cada família tivesse a oportunidade de ouvir a mensagem da redenção divina de um modo culturalmente rele­vante e significativo, tendo a liberdade de reagir. Idealístíco? Talvez. Mas pelo menos é um idealismo bíblico que de fato parece mais realista do que a crença que busca uma sociedade moralmente revitalizada, desejando apenas uma maior coesão familiar, sem atacar as forças económicas que solapam a própria coisa desejada.

 

Precisamos afirmar não apenas a família mas também as condições sociais dentro das quais a coesão familiar se torna economicamente viável e socialmente digna.

 

Senhor de muitos bens

 

A outra coisa que ficamos sabendo sobre Boaz é que ele era um senhor de muitos bens. A expressão, às vezes, significa homem "valente"; foi usada com referência a Gideão, "homem valente", e a Jefté, "homem valente".11 Às vezes significa homem de "poder", como na oração de Moisés por Levi: "Abençoa o seu poder, ó Senhor." Às vezes, significa "riqueza", expressão diversas vezes usada por Isaías.

 

 Também traz um sentido de valor moral; na verdade é a palavra que Boaz usou elogiando Rute em 3:11: "Toda a cidade do meu povo sabe que és mulher virtuosa. Portanto, quando somos apresentados a Boaz, somos apresentados a um homem de integridade, a um homem de influência, a um homem de recursos.

 

Todos esses fatores na vida de Boaz, e, acima de tudo, o fato de ser "alguém da família", um parente de Elimeleque, serão importantes no papel que ele desempenhará dentro da história de Noemi e Rute.

 

"Por casualidade entrou ..." (2:2-3)

 

Rute, a moabita, disse a Noemi: Deixa-me ir ao campo, e apanharei espigas atrás daquele que mo favorecer. Ela lhe disse: Vai, minha filha. 3E/a se foi, chegou ao campo, e apanhava após os segadores; por casualidade entrou na parte que pertencia a Boaz, o qual era da família de Elimeleque.

 

Um dos aspectos mais importantes da fé na providência de Deus é que ela nos ensina que até mesmo as coisas acidentais estão dentro do seu cuidado.

 

O tema do capítulo 2 passa agora para o crescente relacionamento entre Rute, a pobre e jovem viúva de Moabe, e Boaz, o influente homem de recursos que era parente do falecido marido de Noemi. Rute, a esta altura, totalmente ignorante da existência de Boaz, aproveita-se de uma das generosas provisões da lei de Israel, que se refere à respigadura.

 

Por causa da preocupação com os desampara­dos, os pobres e os "viajantes", as leis levíticas exigiam que os segadores nos campos por ocasião da colheita, e também os agricul­tores nas vinhas e nos olivais, deixassem uma porção dos frutos, inclusive às margens dos campos, para que fossem colhidos pêlos necessitados. Os segadores não deviam voltar para buscar o grão que tivessem deixado sem colher ou que tivesse caído.

 

Em Levítico 19:9-10 nós lemos: Quando também segares a messe da tua terra, o canto do teu campo não segarás totalmente, nem as espigas caídas colherás da tua messe. Não rebuscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha: deixá-los-ás ao pobre e ao estrangeiro: Eu sou o Senhor vosso Deus.

 

O motivo da preocupação com os pobres e os oprimidos está expresso em termos do caráter divino. Repetidas vezes, neste capítulo 19 de Levítico, encontramos provisões para a vida doméstica, social, religiosa, económica e para os aspectos pessoais da vida, junto com o refrão: "Eu sou o Senhor".

 

Há no caráter do Deus (o Senhor) da aliança alguma coisa que deve ser seguida com um determinado padrão de comportamento na vida do povo da aliança. Neste caso em particular, o deuteronomista enuncia o motivo mais claramente: "Que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, porque fostes estrangeiros na terra do Egito."

 

Em outras palavras, sendo Deus um Deus que liberta os escravos e cuida dos pobres, dos desamparados e dos necessitados, as leis socioeconômicas do país devem expressar também esta preocupação humana, pois a terra e o povo pertencem a esse Deus da aliança, e o seu padrão de vida deve refletir a natureza dele.

 Assim como no princípio do Jubileu e do ano sabático, e também nas leis do dízimo, está implícita a crença de que a terra pertence, em última análise, a Deus, e de que a sua preocupação com os pobres e os desprivilegiados encontra expressão económica desse modo.

 

Aqui surge uma questão muito importante. Será que os países que herdaram a fé cristã têm o dever de ajudar economicamente as áreas mais pobres do mundo? A preocupação com a justa distribuição dos recursos da terra não é uma opção confortável para o cristão. Ela fazia parte do significado de pertencer ao povo da aliança de Deus.

 

 

A lei da respigadura era uma das maneiras que o antigo Israel entendia como sua obrigação neste sentido. Rute, sendo uma viúva pobre, podia aproveitar-se dela.

 

Rute sabia também que esta provisão da lei era uma provisão generosa, um sinal da graça que vai além dos direitos pessoais na posse de propriedades. Ela sabia que, embora fosse obrigatório que o proprietário deixasse alguma coisa para o pobre, era perfeitamente possível que senhores inescrupulosos dificultassem a vida dos respiga-dores.

 

Os pobres dependiam, em grande parte, da boa vontade do proprietário, como se vê pela conversa de Noemi com Rute, no final do dia: "Bendito seja aquele que te acolheu" (2:19). O pedido de Rute a Noemi reconhece o fato: Deixe-me irão campo, e apanharei espigas atrás daquele que mo favorecer. A palavra "favorecer " é usada com referência à graça de Deus (Noé "achou graça diante do Senhor"), como também expressa o caráter gracioso de uma pessoa em relação à outra. Depois, falaremos mais sobre isto. Por ora, descobrimos que Boaz está colocado no papel de generoso provedor, e Rute é a pessoa neces­sitada que depende da graça de outra pessoa.

 

A gentil lealdade de Rute para com a sua sogra, um dos aspectos mais atraentes deste relacionamento já tão rico e bom, é destacada pelo pedido de permissão que ela faz a Noemi, para ir ao campo. Noemi é o poder propulsionador humano em que se baseiam as escolhas de Rute nos capítulos 2 e 3.

 

Lemos que Rute, por casualidade, entrou na parte do campo que pertencia a Boaz. Ou, como diz a Edição Revista e Corrigida, "caiu-lhe em sorte uma parte do campo de Boaz". Temos aqui uma reafirmação da fé do autor na graciosa providência de Deus. O escritor sabe, como também os leitores, que não foi uma "sorte" ou "casualidade" aciden­tal.

 

O que para Rute foi uma mera coincidência em um conjunto de circunstâncias não planejadas, entendemos (como Noemi entendeu mais tarde naquele dia; 2:20) que foi parte da obra do cuidado gracioso de Deus. "Deus tem o mundo em suas mãos", diz o conhe­cido hino. Ou, na linguagem mais refinada do apóstolo Paulo, que, depois de exaltar a misericórdia, as riquezas, a sabedoria, o conheci­mento e o juízo de Deus, lembra os leitores cristãos de Roma de que "dele e por meio dele e para ele são todas as cousas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém."

 

Abraham Kuyper foi Primeiro Ministro da Holanda no começo do século. Ele também era professor de teologia, jornalista, escritor e amante da arte. Ele fundou a Universidade Livre de Amsterdã em 1880, e na sua conferência inaugural incluiu estas famosas palavras: "Não há uma polegada em toda a área da existência humana que Cristo, o soberano de tudo, não reivindique como sendo sua."

 

 Kuyper tinha a preocupação de colocar cada esfera da vida, de maneira consciente, sob o senhorio e domínio de Cristo, por causa da sua convicção que todo o mundo se encontrava "em suas mãos"; de que "dele e por meio dele e para ele são todas as cousas". Todos os acontecimentos que aparentemente são ocasionais e que alteram a situação do mundo estão nas mãos de um Deus que tem um propósito para esse seu mundo, um propósito que ele "propusera em Cristo, de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as cousas, tanto as do céu como as da terra".

 

O que temos pela frente, não sabemos, se vamos viver ou morrer; mas sabemos que todas as coisas estão ordenadas e certas. Tudo foi ordenado com inerrante sabedoria e amor sem limites, por ti, ó nosso Deus que és amor. Que possamos ver a tua mão em todas as coisas, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor.

Tendo, assim, falado sobre a soberania de Deus, devemos, en­tretanto, nos guardar do ponto de vista estático e determinista sobre Deus que às vezes acompanha esse tipo de fé. O corolário não é que não passamos de peças em algum jogo de xadrez divino, ou de marionetes controlados por cordas nas mãos de um artista celestial. 

Pelo contrário. Tanto o Antigo como o Novo Testamento deixam-nos diante do paradoxo (ao qual retornaremos mais tarde) de que as escolhas e as responsabilidades humanas são inteiramente nossas, e de que o desenvolvimento da nossa fé (com temor e tremor) é também obra nossa, precisamente porque Deus opera em nós "tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade".


Aqui na história de Rute vemos claramente exemplificada a ver­dade de que a graciosa providência divina não abafa a decisão e a ação humanas. Antes, foi o pedido de Rute e o estímulo de Noemi, a acidental escolha do campo e a livre decisão de Boaz de fazer a colheita no seu campo naquela ocasião, que se tornaram instrumentos na mão de Deus para o seu cuidado providencial. Esta visão de Deus, longe de ser estática e determinista, é viva, dinâmica e responsiva.

 

Parte da nossa dificuldade em entender este paradoxo deriva talvez da maneira como as tradições cristãs, tanto a católica quanto a protestante, costumam explicar a graça. A tendência de ambas é considerar a graça de Deus como uma força. Às vezes, ela é vista como um poder extra por cima e acima da f orça humana, uma outra camada de vida, como a nata por cima do leite. Às vezes, a graça é considerada como o poder de uma cirurgia radical que extrai o pecado e coloca, em lugar do poder do pecado original, uma nova força. E naturalmente existe certa verdade em tudo isto.

 

Mas a ênfase principal em nossa compreensão da graça é que "graça" é uma palavra que traduz relacionamento pessoal. Graça significa, mais do que qualquer outra coisa, um "relacionamento cheio de graça" entre Deus e nós. Quando "Noé achou graça" diante do Senhor, a verdade é que Deus, com a sua graça, achou Noé e o convidou a se relacionar com ele de uma forma especial. Assim, a graça de Deus não "age sobre nós" de maneira forçada, acabando com a nossa liberdade. Antes, o relacio­namento cheio de graça de Deus cria a nossa liberdade. E a sua graciosa providência se expressa em nosso tempo e espaço através da liberdade que temos, como seres humanos, de fazer escolhas, tornar decisões e assumir responsabilidades.

 Para dizer a verdade, nem sempre as coisas parecem ser assim. O Pregador assumiu a tarefa de encontrar um propósito divino em todas as coisas e chegou à conclusão deprimente e pessimista de que tudo não passa de "correr atrás de vento".

 

  A vida parece (como deve ter sentido Noemi em suas amargas experiências) um emaranhado de fios desconexos. Mas a fé na graciosa providência divina traz consigo a certeza de que aqueles fios emaranhados são apenas o avesso de uma tapeçaria, cujo lado direito apresenta uma mensagem de espe­rança e graça. Na verdade, a graça através do sofrimento e da incerteza é um tema que se destaca tanto no Antigo como no Novo Testamento.

 

Talvez uma das experiências mais poderosas seja a do apóstolo Paulo, que orou três vezes pedindo a cura de seu "espinho na carne", apenas para receber a resposta transformadora: "A minha graça te basta." Como ele mesmo aprendeu e compartilhou conosco, o poder cheio da graça de Deus "se aperfeiçoa na fraqueza" humana.

 

 É este o ponto alto de sua carta, o vantajoso ponto para onde convergem as experiências de Paulo como apóstolo (inclusive suas fraquezas, provações, alegrias e "acidentes"). Aqui, na hora da necessidade, percebe-se mais claramente a generosa providência de Deus: o que sustentou o apóstolo em sua fraqueza foi a fé. Foi igualmente a fé que, muito tempo antes e com muito menos clareza, Rute partilhou e que o nosso autor está preocupado em expor aqui. Este é o mundo de Deus e até mesmo nossa "sorte" ou "casualidade" faz parte de sua pro­vidência dominante.

 Gratidão (2:4)

 Eis que Boaz veio de Belém, e disse aos segadores: O Senhor seja convosco. Responderam-lhe eles: O Senhor te abençoe.

 Nem sempre o Senhor é reconhecido tão francamente por um gerente em sua conversação com os operários. "O Senhor seja con­vosco" (a única vez em que esta saudação em particular se encontra nesta forma, o que talvez indique ser ela mais do que mera convenção) nos dá a entender que até mesmo o trabalho comum cotidiano é considerado por Boaz e seus homens no contexto da fé no Deus da aliança, a quem pertence a terra. Há, nesta saudação, calor e até mesmo gratidão. Como diz Cooke, "nesta propriedade, um espírito religioso governa o relacionamento entre empregador e emprega­dos."

 

Encontramos uma bênção semelhante no final do Salmo 129: "A bênção do Senhor seja convosco! Nós vos abençoamos em nome do Senhor!" Isto se parece muito com a bênção sacerdotal de Números 6:24: "O Senhor te abençoe e te guarde; o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti, e tenha misericórdia de ti; o Senhor sobre ti levante o seu rosto, e te dê paz." Ela provavelmente reflete a maneira como o sacerdote despedia a congregação depois do culto. 


Mas o salmo usa a bênção apenas em contraste com uma maldição. Mais de uma vez o salmista usa a linguagem da colheita ao fazê-lo, e a certa altura indica que partilhar as bênçãos fazia parte da ideologia da colheita em Israel.


A maldição contra "todos os que aborrecem a Sião" expressa a brevi­dade e a fragilidade da vida em termos de ser esta "como a erva dos telhados, que seca antes de florescer". Descreve, então, o fracasso económico dizendo que "não enche a mão o ceifeiro, nem os braços, o que ata os feixes". Quando chegamos, portanto, ao versículo final, que fala da ausência de confraternização no trabalho em que seria compartilhado esse tipo de bênção, podemos presumir que aqui também se faz referência a um tema de colheita. A comunhão da bênção partilhada fazia parte da filosofia da colheita de Israel.


Além disso, a bênção que é apropriada para o culto é igualmente adequada ao local de trabalho. A troca de bênçãos entre Boaz e seus trabalhadores tem muita semelhança com o repartir da bênção no final do culto. Não há, no Antigo Testamento, separação entre o "sagrado" e o "secular": o todo da vida é vivido "diante da face de Deus". 


Assim o Salmo 129 chega ao seu filial contrastando o silêncio dos futuros destruidores de Israel com aquilo que Maclaren chama de "pequeno e belo quadro de um campo de colheita, onde os que passam gritam seus votos aos alegres trabalhadores e recebem destes saudações iguais."


 "A bênção do Senhor seja convosco! Nós vos abençoamos em nome do Senhor!" Esse também é o quadro aqui em Rute 2: a alegria do trabalho e a invocação das bênçãos do Senhor sobre o fruto do árduo labor.

 

Temos aqui um reconhecimento implícito de uma dependência essencial, ainda que amadurecida (nada infantil), de Deus. No nível da ordem natural, a compreensão de Deus como Criador traz consigo uma compreensão do mundo como uma coisa contingente em sua existência e ordem: isto é, ele poderia ter sido feito de maneira diferente, e a sua existência atual depende totalmente de Deus para continuar sendo assim. 

Como T. F. Torraiice, S. Jaki e outros argumen­tam, esta é uma pressuposição básica de toda obra científica experi­mental. Se a ordem do universo fosse uma ordem logicamente ne­cessária, nós a descobriríamos pensando nela sentados em nossas poltronas.

 

Sendo a sua ordem contingente, só podemos descobrir os padrões da natureza através da experiência. E ainda assim a ciência também aceita que o universo é ordeiro e não caótico. O cristão responde dizendo que ambos, tanto ordem quanto contingência, derivam da racionalidade do Criador, que com liberdade de senhor deu a este mundo uma limitada liberdade na dependência dele. 

E isto se aplica tanto ao nível pessoal como ao impessoal. Nós somos seres morais e racionais, cujas vidas, sob todos os aspectos, refletem os limites de nossa humanidade como criaturas dependentes do Cria­dor, e também uma limitada liberdade de responder-lhe em gratidão e adoração ou de ignorá-lo em suposta autonomia. É pela gratidão e pela adoração que desfrutamos as riquezas da verdadeira liberdade humana dentro dos limites divinos, e é esta que se torna a base de nossa própria criatividade humana em amor.

 

A psicanalista Melanie Klein escreve muito sobre a interação de um senso de "confiança em alvos pessoais bons" com a capacidade de ex­pressar gratidão e, então, sobre o elo íntimo entre gratidão e genero­sidade. De fato, ela argumenta persuasivamente que é o cultivo de uma atitude de gratidão (ela cita, por exemplo, certos hábitos enfati­zados pêlos rituais cristãos, como o de dar graças antes das refeições) que pode mitigar os impulsos destrutivos dentro de nós, como a inveja e ganância.

O reconhecimento de dependência e de gratidão joga um papel nada desprezível em nossa vida emocional, no sentido de libertar-nos dos efeitos deformadores da inveja e da mania de perseguição, e de liberar nossa capacidade de ser generosos e criati­vos. Para a Srta. Klein, tal confiança tem uma relação predominante com a confiança da criança em sua mãe e com o amadurecimento emocional que pode advir de tal relacionamento.

 

Com muito mais frequência poderia (e deveria) o reconhecimento da dependência e, portanto, um sentimento de gratidão para com o Deus da aliança levar-nos a reações de generosidade nos nossos relacionamentos com os outros. Este foi certamente o caso de Boaz.

A jovem moabita: "Sendo eu estrangeira" (2:5-13)

Depois perguntou Boaz ao servo encarregado dos segadores: De quem é esta moça? &Respondeu-lhe o servo: Esta é a moça moabita que veio com Noemi da terra de Moabe. 7Disse-me ela: Deixa-me rebuscar espigas, e ajuntá-las entre as gavelas após dos segadores. Assim ela veio, desde pela manhã está aqui até agora, menos um pouco que esteve na choça. sEntão disse Boaz a Rute: Ouve, filha minha, não vás colher a outro campo, nem tão pouco passes daqui; porém aqui ficarás com as minhas servas. 9Estarás atenta ao campo que segarem, e irás após delas. Não dei ordem aos servos, que te não toquem ? Quando tiveres sede, vai às vasilhas, e bebe do que os servos tiraram.

10 Então ela, inclinando-se, rosto em terra, lhe disse: Como é que me favoreces e fazes caso de mim, sendo eu estrangeira? 11Respondeu Boaz, e lhe disse: Bem me contaram tudo quanto fizeste a tua sogra, depois da morte de teu marido, e como deixaste a teu povo e a tua mãe, e a terra onde nasceste e vieste para um povo que dantes não conhecias. 12O Senhor retribua o teu feito, e seja cumprida a tua recompensa do Senhor Deus de Israel, sob cujas asas vieste buscar refúgio. l3Disse ela: Tu me favoreces muito, senhor meu, pois me consolaste, e falaste ao coração de tua serva, não sendo eu nem ainda como uma das tuas servas.

 

Tem-se dito com frequência que um dos propósitos com que o livro de Rute foi escrito foi a oposição à rígida impermeabilidade da aplicação das leis contra o casamento inter-racial que aconteceu no período de Esdras e Neemias. Conforme já sugerimos, entretanto, é provável que o livro de Rute tenha sido escrito antes do exílio; de qualquer forma, ele não tem o aspecto de um tratado polémico político. Não obstante, seja como for, o livro não apresenta sérios empecilhos àqueles que pensam no povo de Deus, no Antigo Tes­tamento, como a raça israelita para a qual a questão do casamento inter-racial estava sujeita a sanções legais. Este é um ponto de vista comum.

 

A própria Rute se considerava "uma estrangeira". Um rápido exame das leis do Pentateuco que proibiam o casamento entre israelitas e estrangeiros também parece apoiar o ponto de vista de que o povo de Deus era definido em termos raciais. 


Assim, em Deute-ronômio 7:3, o povo de Deus, na iminência de entrar em Canaã, é comparado às nações que já ocupavam a terra, e recebe esta advertência: Não "contrairás matrimónio com os filhos dessas nações: não darás tuas filhas a seus filhos, nem tomarás suas filhas para teus filhos! ­Isto não parece enfatizar uma preocupação com a pureza racial entre o povo de Deus? É um princípio que, nos últimos anos, tem sido explorado consideravelmente na política do "apartheid" da África do Sul. Mesmo assim, é um ponto de vista erróneo.


Em um artigo sobre "Racismo e a Bíblia", John Austin Baker começa dizendo o seguinte: "Quando buscamos orientação e sabedoria na Bíblia para os nossos problemas raciais, a primeira coisa, e a mais importante, que devemos absorver é que a Bíblia não tem absolutamente nada a nos dizer."

 

O que ele quis dizer com esta declaração totalmente sem artifícios é que "raça", nos termos em que refletimos, é um conceito do qual os escritores da Bíblia não tinham a mínima ideia. As diferenças, para não dizer antagonismos, do mundo antigo não eram sobre raça, no nosso sentido étnico ou de diferenças de cor; tinham a ver com cultura, tradição e religião. O único tipo de discriminação que encon­tramos no Antigo Testamento é a cultural e a religiosa, e não a racial. Na verdade, a proibição deuteronômica sobre casamentos mistos, que citamos pouco atrás, foi feita para justificar a lei: não era uma pre­ocupação com raça, mas com religião.

 

Os casamentos com mulheres estrangeiras foram proibidos, "pois elas fariam desviar teus filhos de mim, para que servissem a outros deuses".33 Além disto, os motivos subjacentes na linha dura assumida por Neemias depois do exílio foram precisamente os mesmos: o casamento com "mulheres estrangei­ras" seria o mesmo que (como aconteceu com Salomão) seduzir o povo de Javé à adoração de outros deuses. 

Não é uma proibição de casamento inter-racial, mas, sim, uma forte proibição de casamento inter-religioso. Mas mesmo esta proibição não devia enfatizar a exclusividade como tal. Esdras e Neemias não desistiram da visão universal de "Deutero-Isaías". Eles, antes, insistiram numa base moral e religiosamente definida sobre a qual uma tal visão de missão mundial poderia ser realizada. O povo de Deus deve ser reconhe­cido por suas diferenças culturais, morais e religiosas. Mas não se trata, de forma alguma, de uma questão de "raça".

 

Isto acaba com qualquer tentativa de defender a segregação racial e a discriminação com base num suposto princípio bíblico de "pureza racial". O primeiro princípio sobre o qual se deveria basear qualquer discussão cristã da questão racial é que "no que se refere à raça humana, só existe um único grupo". 

Ser membro do povo da aliança de Javé, portanto, é uma questão de fé na promessa universal de graça, e não uma questão de raça, cor ou antecedentes étnicos. E este sempre tem sido o padrão de fé do Antigo Testamento. Com certa ironia, Baker comenta sobre os "partos, medos e elamitas e os naturais de Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, Ponto e Ásia; da Frigia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia nas imediações de Cirene, e romanos que aqui residem, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes", mencionados em Atos 2, destacando o fato de que eles estavam reunidos em uma comunidade universal sob a antiga aliança para prestar culto em Jerusalém quando o dom pen tecos tal do Espírito Santo foi derramado. O que os unia inicialmente era sua fé em Javé.

 

E foi o que ocorreu com Rute e Boaz. Embora Rute se entendesse como uma "estrangeira", Boaz a recebe como membro da família de Javé, sob cujas asas ela veio buscar refúgio.

 

A insistência do evangelho do Novo Testamento, em que a graça de Cristo e a f é dos cristãos transcendem todas as barreiras raciais e devem ter expressão nos relacionamentos da comunidade, baseia-se na convicção fundamental de que Deus "de um só fez toda raça humana". 


O Salvador que os cristãos proclamam é um salvador universal que participa de nossa humanidade comum. O diálogo do próprio Jesus com a mulher de Samaria, junto ao poço de Sicar, destaca esse mesmo ponto. E é esta insistência do Novo Testamento que é prefigurada na generosa atitude de Boaz, o belemita, para com Rute, a viúva de Moabe.


Como é que me favoreces e fazes caso de mim? (2:10). Já percebemos que Rute se considerava dependente da graça. Face a face com Boaz, ela novamente reconhece na solícita generosidade deste os sinais da graça ("favoreces"). Boaz obviamente já tinha ouvido falar da volta de Noemi e Rute de Moabe a Belém (versículo 11). Sabia que Rute aceitara a fé em Javé e ouvira do seu devotado serviço à sogra, o que era provavelmente reforçado pela notícia da persistência de Rute o dia todo no trabalho (2:7). 


Ele sabia que ela desistira de sua família e amigos, de sua religião e da companhia de seus compatriotas para ficar com Noemi. Boaz sabia que Rute, tal como Abraão, deixara a casa de seu pai e a sua parentela para ir a uma outra terra, não sabendo o que lhe reservava o futuro. E ele sabia que isto era uma prova da profundeza da fé recém-descoberta de Rute em Javé (2:12), uma fé que se expressava em amor.

A notícia de que aquela era a moça moabita que veio com Noemi da terra de Moabe não surpreendeu a Boaz quando ele perguntou ao encarre­gado dos segadores quem era a nova jovem que rebuscava no campo (versículo 5). 

Boaz imediatamente responde com a instrução de que ela deve ser tratada com respeito (versículo 9). Rute recebe esta iniciativa como um sinal da graça (versículo 10), outra indicação para ela, talvez, da graciosa providência do seu novo Deus.

Aqui, porém, um outro aspecto do significado da graça começa a se tornar claro. Já falamos do relacionamento cheio de graça entre uma pessoa e Deus, que capacita colocar as mudanças e as oportunidades dos acontecimentos deste mundo dentro de uma nova perspectiva: ver "o mundo inteiro nas mãos dele". Também mencionamos a graça através do sofrimento, o qual sustentou Noemi em suas amargas experiências: uma graça que é suficiente, que é "perfeita" em situações de fraqueza humana. Vemos aqui que a graça também tem muito a ver com a provisão das necessidades pessoais. 

Em sua graciosa providência, além de governar o seu mundo, Deus também o sustenta e provê o necessário. O salmista adora a Deus pela sua grandeza, não apenas como Criador, mas também como sustentador e provedor. 

O mundo não é apenas um mundo ordeiro (como o indica a nossa compreensão da criação e o fato de o empreendimento científico ser possível); é, como dissemos, um mundo contingente, lembrando-nos a nossa contínua e constante dependência da graça mantenedora de Deus. A manutenção e aprovisão de Deus para o seu mundo também são um aspecto de sua graça. E a sua provisão cheia de graça para conosco geralmente se expressa através da genero­sidade cheia de graça dos outros. 

É Noemi quem, naquele mesmo dia (2:20), relaciona mais claramente a generosidade de Boaz com a provisão cheia de graça de Deus; mas talvez mesmo antes essa relação já tivesse começado a despontar na mente de Rute. Boaz empenhou-se em ser gentil: "Não vás colher a outro campo ...ficarás com as minhas servas ... e irás após elas ... Quando tiveres sede... bebe do que os servos tiraram" (2:8-9). Certamente suas palavras gentis e a oferta de pelo menos uma posição temporária em sua casa (ficarás com as minhas servas) foram um conforto para a viúva de Moabe. Talvez fossem para ela o primeiro sinal do fim do escuro túnel que ela vinha atravessando desde a morte do seu marido. Foram um sinal de esperança.

 

Humildade e responsabilidade

"Deixa-me rebuscar... Então ela, inclinando-se, rosto em terra... não sendo eu nem ainda como uma das tuas servas (2:7,10,13). Se Boaz percebeu em Rute a devoção de sua lealdade para com Noemi, não poderia deixar de perceber nela a sua humildade em relação a ele. Embora a lei, como já vimos, exigisse o cuidado para com os pobres, Rute não insistiu em seus direitos. Humildemente ela pedira permissão ao servo encarregado: Deixa-me rebuscar. Este humilde reconhecimento de sua dependência também se vê na sua outra resposta: "Mas o que estou dizendo ao me chamar tua serva? Eu não sou digna de ser comparada com a menos importante das tuas servas!"

Em seu importante comentário sobre direitos humanos (Human Rights: a Study in Biblical Themes), Christopher Wright começa, não com "direitos", mas com a "responsabilidade para com Deus", que ele considera como a característica essencial do que significa ser humano.

Não podemos escapar à responsabilidade, pois isto não está em nosso poder como criaturas. Mesmo tentar negá-la é reconhecer sua realidade. Assim Caim, até mesmo ao tentar isentar-se da respon­sabilidade para com o seu irmão, pelo simples fato de responder a Deus, admite a sua responsabilidade para com o seu Criador. 

E inseparável dessa responsabilidade primeira está o fato de que Deus nos considera responsáveis pelo nosso próximo. Conside­rando que não podemos escapar ao fato intrínseco de nossa consti­tuição humana, que é a responsabilidade para com Deus, tampouco podemos fugir ao seu correlativo divinamente imposto, a nossa obrigação diante de Deus pêlos outros seres humanos.

As características que mais se destacam em Boaz, um homem de fé, e em Rute, uma mulher de fé, aqui neste parágrafo, são as suas respectivas recusas de se apegarem aos seus direitos (Boaz como proprietário, Rute como rebuscadora). Temos, antes, evidências de sua humilde disposição de expressar a fé em Deus cuidando (Boaz para com Rute), e de gratidão e humildade aceitando o cuidado (Rute para com Boaz). Uma fé viva, às vezes, é demonstrada no ato de dar, outras vezes, na disposição de aceitar com gratidão.

Como já notamos antes, nunca devemos formular a nossa com­preensão da providência soberana de Deus de tal forma a diluir a nossa responsabilidade humana. A graça de Deus não elimina a nossa liberdade; antes, a graça cria a liberdade. E a primeira premissa de toda moralidade é que a pessoa moral é responsável. Na Bíblia, a responsabilidade fica atribuída às pessoas feitas à imagem de Deus, e contém o senso de "resposta" ao Criador, que nos considera responsáveis. 

Nossa compreensão cristã da queda humana, na qual o pecado desordenou todos os aspectos de nossa personalidade e relacionamentos, significa que uma responsabilidade humana to­talmente restaurada deve estar ligada à nossa total restauração como pessoas, à medida que nos tornamos mais e mais semelhantes a Cristo. Assim, como em todos os aspectos da vida cristã, há uma ambiguidade no exercício de nossa responsabilidade entre o "agora" do hoje e o "ainda não" do futuro dia do Senhor. 

A responsabilidade é, portanto, uma admissão e um alvo. Devemos ficar atentos aos efeitos debilitantes dos pecados de outras pessoas, e dos nossos próprios, no exercício de nossa responsabilidade, mas não temos a liberdade de anular a nossa responsabilidade moral por causa de qualquer tipo de determinismo. Toda a nossa vida está sob o que

Barth certa vez chamou de "mandato global da liberdade res­ponsável".' Ser responsável é viver como se prestássemos conta a Deus e cuidássemos dos outros, dentro dos limites da liberdade que temos neste mundo.

E existem limites. O fato de ser um mundo criado, estabelece limites à nossa liberdade. Somos livres como criaturas de Deus; portanto tal liberdade não é arbitrária. O fato de nossa constituição física, genética e psicológica coloca limites à nossa liberdade; somos o que somos, em certo sentido, por causa do que foram os nossos pais. Há limites estabelecidos pelas personalidades e necessidades dos outros: a lei do amor nos obriga a não exercer a nossa liberdade às custas da hu­manidade de qualquer outra pessoa. Somos obrigados, antes, a exercê-la para o maior bem dos outros. A existência do pecado também coloca limites à nossa liberdade, de tal forma que nem sempre somos capazes de fazer o que sabemos ser o bem, mesmo quando desejamos fazê-lo. E há limites morais à nossa liberdade, que indicam que, às vezes, temos que dizer "não devemos" quando a tecnologia diz "podemos". Estes limites precisam ser enfatizados em nosso contexto de devastação ecológica, na licenciosidade sexual, na proliferação das armas nucleares e no congelamento dos embriões humanos.

Responsabilidade é aprender a "amar dentro dos limites"46, é um diálogo responsável com as restrições que nos são impostas, sempre abertos à direção e à graça de Deus, sempre abertos às reivindicações éticas prioritárias das necessidades dos outros. E isto que a ex­periência da fé em Deus significava para Boaz e Rute. Podemos aprender com eles a importância de se viver dessa forma.

 

O Senhor da Aliança

O Senhor retribua o teu feito, c seja cumprida a tua recompensa do Senhor Deus de Israel, sob cujas asas vieste buscar refúgio (2:12-13). Javé, o Senhor, como já observamos anteriormente, é o nome do Deus de Israel na aliança. De acordo com Êxodo 6:2s., o significado deste nome foi esclarecido a Moisés quando Deus prometeu, lembrando sua aliança com Abraão, Isaque e Jacó, libertar e resgatar "com braço estendido" o seu povo, então escravo no Egito. Foi Javé, o Senhor, quem, de acordo com Êxodo 19:3ss., chamou Moisés e estabeleceu com ele a sua aliança no Sinai, uma aliança na qual percebemos pela primeira vez a ideia do "povo escolhido". 

Foi sob o nome Javé que, segundo Êxodo 20:lss., Deus enunciou os Dez Mandamentos, essa destilação fundamental de princípios e preceitos que descrevem o caráter de Deus e também o padrão de vida apropriado a um povo que fez aliança com Deus, que mais do que qualquer outra coisa estabe­leceu os limites morais para o povo de Deus, e que, em maior ou menor extensão, se reflete em todas as outras leis do Pentateuco, no Antigo Testamento, como também no Sermão do Monte e nas cartas de Paulo, no Novo Testamento.

A aliança do Sinai foi modelada segundo os tratados de suserania comparativamente comuns no antigo Oriente Médio. Quando os reis dos grandes impérios (o Egito, os hititãs, a Assíria) conquistavam um reino menor, eles podiam permitir que o rei subjugado retivesse o governo do seu reino, contanto que fizesse um juramento de vassa­lagem ao conquistador. 


Através desse tratado de suserania, o subju­gado jurava vassalagem ao "grande rei" conquistador. Esta termi­nologia passou para o registro israelita no seu relacionamento pactuai com Deus. Contrastando a aliança do Sinai com a aliança abraâmica que a precedera e a aliança davídica que se seguiu a ela, G. J. Wenham escreve:

 

A aliança do Sinai não teve como modelo um privilégio real, mas sim um tratado de vassalagem, uma forma legal em que as obri­gações do vassalo são muito mais proeminentes. Mas mesmo então as leis são estabelecidas em um contexto de graciosa iniciativa divina. A obediência à lei não é fonte de bênção, mas aumenta a bênção já concedida.49

Há, portanto, um padrão de escolha divina e iniciativa da graça, de obediente reação humana em adoração e serviço, que, por sua vez, leva a um gozo maior de outras bênçãos divinas.

Voltando agora à oração de Boaz em favor de Rute (2:12), podemos ver uma clara evidência da consciência que este tinha de ser membro dessa família pactuai do Deus de Israel. O seu conhecimento de Deus como Javé, o Senhor; a sua descrição da graça de Javé em termos de "asas de refúgio"; seu reconhecimento, então, da reação humilde e obediente de Rute para com a graça, em sua devoção a Noemi; e, finalmente, sua expec tativa de que o Senhor a abençoaria plenamente, tudo indica o padrão do relacionamento de Deus com o seu povo dentro da aliança. "Nestas palavras", comentam Keil e Delitzsch sobre este versículo, "vemos a piedade genuína de um verdadeiro israelita." "Retribuição" e "recompensa"

 

A devoção cristã sempre teve a devida cautela de não fazer o bem "por amor a uma recompensa". Mas as palavras que Boaz usa aqui são "retribuição" e "recompensa". Essa oração de Boaz pedindo a Deus um "pagamento" para Rute por seu devotado serviço deve ser entendida no contexto de sua fé no Senhor da aliança. A palavra "retribuição" é usada com diversas e diferentes nuances no Antigo Testamento. Está relacionada com a palavra "paz". Pode ter sentido de "pagamento", como quando Eliseu diz à mulher de um dos filhos dos profetas: "Vai, vende o azeite, e paga a tua dívida."


 Pode ter o sentido de "reparação". Se um boi ou um jumento caísse em uma cova que fora aberta por um homem e ficara sem cobertura, a lei do Livro da aliança exigia que ele fizesse a "reparação". Semelhantemente, "quem matar um animal, o restituirá: igual por igual"


A mesma palavra é, às vezes, usada também para "restituição" ("Restituir-vos-ei os anos que foram consumidos pelo gafanhoto migrador") e para "fazer paz". A palavra "recompensa", entretanto, é uma pa­lavra pouco usada no Antigo Testamento, aparecendo outra vez apenas em Génesis, sempre no sentido de "salário".


A oração de Boaz é, portanto, que Deus "recompense conveniente­mente" a Rute por todo o seu sofrimento e altruísmo para com Noemi, que ela seja "suficientemente paga" e "restaurada a uma condição de inteireza e paz" novamente.

Mas por que deveríamos nos preocupar com "pagamentos" e "recompensas"? Não parece que, deixando de lado a piedade, pas­samos a um prudente interesse pelo que poderíamos receber por causa dela? Será que a fé de Boaz aponta para uma crença que diz ser preciso ganhar o favor de Deus através de serviço sacrificial? 

O Novo Testamento não destaca principalmente que somos justificados pela graça mediante a fé, e não pelas obras? Mas então nos lembramos de que o Novo Testamento também parece ter muito a dizer sobre recompensas. Jesus fala de um "grande galardão nos céus" para aqueles que são perseguidos. 

Ele ensina que o Pai que vê seus filhos dando esmolas, orando e jejuando em segredo, irá recompensá-los. Nem um copo de água fresca ficará sem recompensa; e Deus é chamado de "galardoador" daqueles que o buscam, e aquele que recompensa seus profetas e santos. E agora? Talvez seja conveniente fazer aqui uma distinção entre o que se costuma chamar de recompen­sas "arbitrárias" e aquelas que são "verdadeiras" recompensas. As recompensas arbitrárias não têm qualquer relação direta com o comportamento que as causou. 

Não há necessariamente nada de errado em se ser recompensado arbitrariamente (como receber di­nheiro por uma pintura a óleo que você criou). Seria um erro, 110 entanto, buscar a recompensa arbitrária só por amor a ela. É este o defeito dos hipócritas que tocam suas trombetas e oram nas esquinas e desfiguram seus rostos quando jejuam "para serem vistos pêlos homens".

As "verdadeiras" recompensas, pelo contrário, são consequências diretas e integralmente relacionadas com o comportamento (como a satisfação de ser capaz de pintar depois de muita prática). Assim, a verdadeira recompensa de se dar esmolas, orar e jejuar é o relacio­namento com Deus, o que essas atividades pretendem expressar. Portanto, quando Jesus insiste em que as boas obras deveriam ser feitas sem interesse em recompensa, ele também dá a entender que a "verdadeira" recompensa pela bondade deve ser deixada com Deus. Um precioso relacionamento com Deus é a "devida recom­pensa" da obediência amorosa em resposta à sua iniciativa de graça e amor. 

A Edição Revista e Corrigida capta o sentido, se não a tradução exata, de Génesis 15:1: há algo do próprio Deus experimen­tado em todos os seus benefícios. A sua palavra a Abraão foi: "Não temas ... eu sou o teu escudo, o teu grandíssimo galardão." Calvino, comentando este versículo, diz que a palavra "galardão" tem a força de "herança" ou "felicidade". Ele insiste   que deveríamos gravar profundamente em nossas mentes que só em Deus temos a mais elevada e completa perfeição de todas as coisas, e que "seremos verdadeiramente felizes quando Deus nos for propício; pois ele não somente derrama sobre nós a abundância de sua bondade, mas oferece-se ele mesmo a nós para que o desfrutemos."

Qualquer pessoa que esteja completamente convencida de que a sua vida está protegida pela mão de Deus, e de que ela nunca pode ser miserável enquanto Deus for gracioso para com ela; e que, conseqüentemente, recorra a esta certeza em todos os seus cui­dados e problemas, encontrará o melhor de todos os remédios para todos os males. Não que os fiéis possam ficar inteiramente livres de temores e cuidados quando sacudidos por temporais de lutas e misérias, mas porque a tempestade é acalmada no seu próprio peito; e, assim, sendo a defesa de Deus maior do que todo perigo, a fé triunfa sobre o medo.

A oração de Boaz em favor de Rute fala de sua experiência de um relacionamento rico com Deus como a "devida recompensa" por sua lealdade para com Noemi, resultante, segundo ela crê, da nova fé no Deus da aliança de Israel.

 

As asas de refúgio

A oração de Boaz termina com esta frase, que de diversas maneiras focaliza o tema de todo o livro. Ela inclui este gracioso quadro de Deus como uma águia que estende as asas sobre os seus filhotes. O hino de Moisés registrado em Deuteronômio 32:lls. usa a mesma imagem: "Como a águia desperta a sua ninhada, e voeja sobre os seus filhotes, estende as suas asas, e, tomando-os, os leva sobre elas, assim só o Senhor o guiou." Figuras semelhantes encontramos nos salmos. 

As "asas" de Deus descrevem um lugar de segurança ("Esconde-me, à sombra das tuas asas, dos perversos") ou um lugar de refrigério ("Como é preciosa, ó Deus, a tua benignidade! por isso os filhos dos homens se acolhem à sombra das tuas asas. Fartam-se da abundância da tua casa, e na torrente das tuas delícias lhes dás de beber"). 

Em outras passagens a figura é de um lugar de quietude na tempestade ("Tem misericórdia de mim, ó Deus, tem misericórdia, pois em ti a minha alma se refugia; à sombra das tuas asas me abrigo, até que passem as calamidades"). 

Algumas vezes descreve um lugar de auxílio e descanso ("Porque tu me tens sido auxílio; à sombra das tuas asas eu canto jubiloso"). Outras vezes o pensamento é de esperança quando as circunstâncias amedrontam ("O que habita no esconderijo do Altíssimo, e descansa à sombra do Onipotente, diz ao Senhor: Meu refúgio e meu baluarte, Deus meu, em quem confio. Pois ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa. Cobrir-te-á com as suas penas, sob suas asas estarás seguro: a sua verdade é pavês e escudo. Não te assustarás ,.."). 

Segurança, refrigério, quietude, auxílio, descanso, esperança: estas são as palavras associadas com as "asas" de Deus.

Há no ser humano um anseio básico por Deus, captado na figura do filho pródigo longe do lar, e na afirmação de Agostinho, de que nossos corações não encontram paz até que encontrem o seu repouso em Deus, e na "noite, no escuro e no medo" citados por alguns dos nossos escritores contemporâneos. Como satisfaz à pessoa "alienada", aquela que se sente "sozinha na insensível imensidão do universo", descobrir que, longe de estar "em pedaços" a antiga aliança, Deus está presente: Deus se importa, Deus governa, Deus provê.

Ó Senhor nosso Deus, que o abrigo de tuas asas dê esperança. Protege-nos e preserva-nos. Tu serás o Sustento que nos dá o apoio desde a meninice até quando as nossa cabeças ficarem grisalhas. Quando tu és a nossa força, nós somos fortes, mas quando a nossa força é a nossa própria, somos fracos. 

Em ti habita o nosso bem para sempre, e quando nos desviamos de ti, voltamo-nos para o mal. Faze que finalmente voltemos para o lar, ó Senhor, para que não nos percamos, pois em ti habita o nosso bem que não tem mácula, pois és tu mesmo. Não tememos que não haja lar para retornar. Nós nos afastamos dele; mas o nosso lar é a tua eternidade e ela não desmoronou porque nós nos afastamos.

Que Rute encontre no Deus de Israel tal provisão para as suas ' necessidades! Sua porção foi a de uma viúva sozinha em terra estranha, e parece que ela agora se encontra em contínuo perigo de ser molestada (2:22). 

Ela passou fome, mudanças, ansiedade e sem dúvida ficou emocionalmente esgotada. Como precisa de um lugar de segu­rança e refrigério! Ela anseia por encontrar quietude, repouso e uma nova esperança. A oração de Boaz é que ela encontre tudo isto através da sua confiança em Javé.

Como nos revela o restante da história, descobrimos que aquele que fez esta oração é de fato aquele através de quem ela será atendida! É através do próprio Boaz que Rute recebe segurança, refrigério e alimento, encontra um lugar de repouso na alegria do casamento e a esperança de um novo lar e um novo nome familiar. 

Nós, na quali­dade de povo da aliança de Deus, o Israel que pertence a Cristo, podemos fazer acertadamente a mesma oração para nós e para os outros. Podemos experimentar o refúgio de suas asas e ao mesmo tempo estar prontos para ser o meio de outros passarem pela mesma experiência. Como Helmut Thielicke expõe no final do seu grande sermão sobre o filho pródigo e o pai que o aguarda. "Há para todos nós uma volta ao lar, porque existe um lar."

 ***

 

 

APRENDENDO COM RUTE

 

APRENDENDO COM RUTE

 

AS LÁGRIMAS

 

 

Preocupação com as coisas comuns (1:1)

Nos dias em que julgavam os juizes ...um homem.

 

Em um mundo dominado (se acreditarmos nos meios de comuni­cação) pela "crise" e pêlos "desafios", no qual cada pequeno aconteci­mento pode ser transformado em manchete, contanto que haja nela uma "história interessante" (e até mesmo em uma igreja, onde o incomum e espetacular costuma ser recebido por certas pessoas como mais autêntico que a monotonia e a rotina), é um alívio abrir o livro de Rute.

 

Já descrevemos a agradável simplicidade de seus assuntos: a vida do interior, suas alegrias e tristezas, suas "virtudes agradáveis" e, especialmente, sua concentração nos personagens à volta dos quais se tece a história.

 

Isto se destaca mais ainda pelo contraste com o livro dos Juizes, com o qual as palavras iniciais estabelecem uma ligação. O livro de Juizes termina com uma referência ao caos social e à miséria pessoal resultantes da falta de autoridade justa entre o povo: "Naqueles dias não havia rei em Israel: cada um fazia o que achava mais reto."

 

 O livro de Juizes foi pintado numa tela grande. Embora apareçam no livro personagens individuais, sempre surgem no contexto da guerra civil, das convulsões nacionais, dos assuntos internacionais.

 

Mas o livro de Rute, embora não fique totalmente esquecido do significado nacional, e até mesmo global, dos seus personagens, trata de um < homem, sua família e seu destino. Lembra-nos de que o Deus das nações também está interessado nas coisas comuns relacionadas a "um homem".

 

Nosso Senhor, que nos ensinou a orar ao "nosso Pai que está no céu" e a elevar nossos corações e mentes para a visão global da vinda do seu reino (pois seu é o reino e a glória para todo o sempre), também nos ensinou a orar pelo pão nosso de cada dia. Deus, que sabe quando um pardal cai ao chão e que nota quando oferecemos um copo de água fresca a quem precisa dele,2 também se interessa pelas coisas comuns. Como Helmut Thielicke o destaca:

 

 

Diga-me até que ponto você considera Deus sublime e eu lhe direi quão pouco ele significa para você. Este pode ser um axioma teo­lógico. O Deus sublime foi arrancado de minha vida particular... Se Deus não tem significado para as minúsculas peças do mosaico de minha vidinha particular e para as coisas que são do meu interesse, então ele não tem significado algum para mim.

 

O interesse de Deus no destino de um homem nos dias em que julgavam os juizes deveria nos lembrar que até mesmo as nossas coisas mais comuns são significantes para Deus e se encaixam no seu cuidado todo-poderoso.

 

ASAS DE REFÚGIO

 

Graça e gratidão

 

O segredo (2:1)

Tinha Noemi um parente de seu marido, senhor de muitos bens, da família de Elimeleque, o qual se chamava Boaz.

 

Enquanto a maior parte das histórias de detetives guarda seu segredo até a última página, o escritor de Rute nos revela um segredo bem no começo deste capítulo.

 

Ao fazê-lo, ele nos dá mais uma indicação do propósito geral deste livro e de sua preocupação em não nos deixar ignorantes a respeito dele. A esta altura da história, nem Noemi nem Rute sabiam que não muito longe de sua casa morava um homem de considerável riqueza e influência que era seu parente, ou melhor, parente do falecido marido de Noemi.

 

O dia da vida de Rute contido em Rute 2:1-22 é o dia em que ela vem a conhecer esse homem, Boaz. No final do dia, depois do trabalho, ela conta a Noemi o que aconteceu. Só então ela percebe o verdadeiro significado do seu encontro (2:20). Até então, Rute não havia notado que o encontro não fora acidental, mas parte do propósito de um Deus cheio de graça e cuidado.

 

Mas nós, os leitores, somos informados sobre Boaz neste primeiro versículo. Com esta informação, nosso contador de histórias está nos preparando pelo seguinte motivo: quando, mais tarde, Rute vem a conhecer Boaz de um modo que lhe parece puramente acidental, nós já estaremos informados. Por trás dos aparentes acasos dos encontros comuns do dia-a-dia, Deus expressa o seu cuidado e a sua determi­nação providencial, a sua graça da aliança.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

APRENDENDO COM RUTE

APRENDENDO COM RUTE  

A fé de Rute (Rute l:14b-18)

Órfã com um beijo se despediu de sua sogra, porém Rute se apegou a ela. Disse Noemi: Eis que tua cunhada voltou ao seu povo e aos seus deuses; também tu, volta após a tua cunhada. Disse, porém, Rute: Não me instes para que te deixe, e me obrigue a não seguir-te; porque aonde quer que fores, irei eu, e onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. Onde quer que morreres, morrerei eu, e aí serei sepultada; faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver, se outra cousa que não seja a morte me separar de ti. Vendo, pois, Noemi que de todo estava resolvida a ir com ela, deixou de insistir com ela.

Enquanto Órfã deu prova do seu amor na obediência ao desejo de Noemi de que partisse para se casar novamente, Rute demonstrou o seu amor tornando-se sua filha. 

Lemos que Rute se apegou a Noemi (versículo 14). Este verbo é a palavra que expressa um "apego" fiel e sincero em um relacionamento pessoal, como o do homem com a esposa no jardim do Éden. 

Também é usado em relação à sincera fidelidade que Deus espera do povo da aliança em resposta à sua iniciativa da graça salvadora. Rute, a moabita, ex-adoradora de Camos, está demonstrando uma qualidade de vida característica do povo de Javé.

Apesar de Noemi citar o exemplo de Órfã e da óbvia adequabilidade de que Rute permaneça com o "seu povo", e apesar de que, de acordo com a sabedoria humana, uma adoradora de Camos devesse obviamente permanecer onde os "seus deuses" eram adorados, Rute insiste em ficar com Noemi. 

O nosso autor apresenta aqui as palavras de Rute, sua clássica e bela afirmação de fidelidade, determinação e compromisso de amor. Rute quer compartilhar do futuro de Noemi: sua viagem, seu lar, sua fé. É a promessa de uma fidelidade sincera na vida e para toda a vida. Ou, por que não dizer, além da vida: os membros de uma família partilhavam do mesmo chão ao serem sepultados, pelo menos na Palestina primitiva; e supomos que isto também acontecia com o povo de Rute. Como diz Leon Morris, a firme determinação de Rute é que nada, nem mesmo a morte, vá separá-la de Noemi. 

E no centro desta expressão de amor e compro­misso para com Noemi (na viagem, no lar, na família, na vida e na morte) está o compromisso de adorar o Deus de Noemi. Embora, num certo sentido, seja verdade que Rute talvez pensasse que uma mu­dança para Belém poderia implicar a necessidade de reconhecer "o deus de Belém", num outro, a sua fé mostra-se explicitamente mais profunda. 

Rute está disposta a colocar nos seus lábios o nome do Deus da aliança de Noemi, Javé, o Senhor, numa determinada profissão de fé naquele que fundamenta o seu juramento. Faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver: esta expressão deveria incluir um gesto invocando a punição de Javé sobre ela, caso deixasse de cumprir o seu voto.

A fé de Noemi com certeza era tão eficaz, mesmo na adversidade, apontando para o governo soberano de Javé, que Rute, através do testemunho de Noemi, foi agora capaz de exercer a sua própria fé no Deus dela e de se considerar agora como parte do povo da aliança de Javé. Não teria sido precisamente a fé de Noemi, em meio às in­certezas, que mostrou a Rute o Senhor?

Com que frequência o Senhor usa as experiências do seu povo, especialmente em períodos de aflição e dificuldades, para atrair outros a si! Quando Moisés foi ao encontro de Jetro, seu sogro, ele contou "tudo o que o Senhor havia feito a Faraó e aos egípcios por amor de Israel, todo o trabalho que passaram no Egito, e como o Senhor os livrara." Jetro se regozijou pelo livramento cheio de graça de Deus: "Agora sei que o Senhor é maior que todos os deuses."

Da mesma forma, Paulo, preso sob a guarda romana, o que ele considerava como parte de sua "incumbência" para com Cristo, escreve aos leitores em Filipos: "Quero ainda, irmãos, cientificar-vos de que as cousas que me aconteceram têm antes contribuído para o progresso do evangelho." Por meio dos seus sofrimentos a igreja foi incitada a uma renovada devoção e Cristo foi pregado.

Aqui, nesta passagem, o Senhor está atraindo Rute à fé, certamente usando como testemunho persuasivo a experiência da graça de Noemi através da aflição. Um Deus que se revela no vale das sombras é digno de nossa confiança também nos dias de maior conforto.

 Noemi ou Mara? (1:19-22)

Então ambas se foram, até que chegaram a Belém; sucedeu que ao chegarem ali, toda a cidade se comoveu por causa delas, e as mulheres diziam: Não é esta Noemi? Porém ela lhes dizia: Não me chameis Noemi, chamai-me Mara; porque grande amargura me tem dado o Todo-poderoso. Ditosa eu parti, porém o Senhor me fez voltar pobre; por que, pois, me chamareis Noemi, visto que o Senhor se manifestou contra mim, e o Todo-poderoso me tem afligido? Assim voltou Noemi da terra de Moabe, com Rute, sua nora, a moabita; e chegaram a Belém no princípio da sega das cevadas.

Quando Noemi viu que Rute estava "resolvida", firmemente de­terminada por uma decisão inabalável (1:18), ela concordou, e as duas viúvas seguiram juntas para Belém. Quando chegaram, os homens, ao que parece, estavam fazendo a colheita da cevada, no começo da sega, isto é, em abril. 

Mas as mulheres (Knox as restringe a "todas as fofoqueiras"!) começaram a fazer perguntas. Noemi estivera fora durante muitos anos. Ela partira com marido e dois filhos, e voltava agora viúva com uma nora viúva. Talvez sua aparência falasse da amargura que tinham experimentado. Quando lhe perguntaram: Não é esta Noemi?, o jogo de palavras com o significado do seu nome é comovente: Não me chameis Noemi (que significa "alegre"); antes, chamai-me Mara (que significa "amargura"). Conforme percebemos em 1:13, ela crê que as amargas experiências que enfrentou vieram da mão de Deus: "porque grande amargura me tem dado o Toâo-Poderoso."

 O Todo-poderoso

O título divino traduz a palavra hebraica Shadai, geralmente usada no Pentateuco e particularmente em Génesis. Discordam os autores sobre o significado de sua raiz, sugerindo alguns que mais provavel­mente a etimologia relacione "Shadai" com "montanha", no sentido qualitativo de possuir durabilidade, solidez e veracidade.

 Contudo, se verificarmos o seu uso em Génesis, descobriremos três referências que podem esclarecer o seu significado, levando-nos ao pensamento de Noemi ao usá-lo.

Primeiro, em Génesis 17:1, descobrimos que Deus fez a um Abraão de noventa e nove anos de idade a promessa de gerar filhos, e se revela como "Deus Todo-poderoso". Aqui ele é o Deus que pode transfor­mar a impotência do homem em bênção, para o bem do próprio homem e para a sua glória. Segundo, em Génesis 43:14, o velho Jacó, em sua perplexidade, concorda relutantemente com que os seus angustiados filhos retornem ao Egito, levando o irmão mais moço para o (até então) ainda não identificado José: "Deus Todo-poderoso vos dê misericórdia perante o homem." "Shadai" aqui fala da espe­rança da proteção de Deus para um período de incertezas. 

E, terceiro, em Génesis 49:25, a profecia de Jacó sobre os seus filhos fala da futura "fertilidade" de José apesar de todo o "embaraço", e o atribui ao "Todo-poderoso, o qual te abençoará com bênçãos dos altos céus, com bênçãos das profundezas, com bênçãos dos seios e da madre." Depois de treze anos de sofrimento e isolamento na prisão, José é elevado a primeiro ministro do Egito! Esse tipo de bênção é característico de Shadai.

E é com referência a esse aspecto do caráter de Javé descrito por "Shadai" ("o Deus que é melhor quando o homem está na pior", como J. A. Motyer uma vez expressou) que Noemi apresenta a estrutura de sua fé naquele em quem ela deposita o seu sofrimento. É como se ela dissesse: "Vocês podem ver a amargura que tenho experimentado: a fome, a perda de entes queridos, as dúvidas, as separações, o aparente desespero; mas eu conheço Deus como Shadai, e posso deixar as explicações, e até mesmo a responsabilidade, desta amargura com ele."

Será que ela não estava conseguindo enfrentar a realidade? Será que Noemi estava errada em pensar assim? Será que ela estava acusando Deus do mal que sofria, usando aquele tipo de astuta explicação mais apropriada aos inúteis consoladores de Jó ao invés de observações que eram fruto de uma fé amadurecida?

 Não nos parece assim. Antes, parece que é exatamente a chave de como uma pessoa de fé aprende a enfrentar a dor e a incerteza das muitas tribulações da vida. Em um mundo, no qual, da perspectiva humana, as palavras do Pregador parecem sobremodo verdadeiras ("Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento"), suas outras palavras podem fornecer o contexto completo, a perspectiva mais ampla dentro da qual a "vaidade" pode ser enfrentada: "não sabes as obras de Deus, que faz todas as cou­sas". 

É a pessoa que conhece o seu Deus como Shadai que pode perceber a outra história: que até mesmo a aparente falta de signifi­cado do sofrimento terreno faz parte de um padrão da providência, e pode ser enfrentada quando colocada nas mãos de Deus. E não apenas Shadai, pois o Deus que se revelou nessa característica é o Deus que também declarou o seu nome ao seu povo: Javé, um nome que aponta para o seu amor expresso na aliança. E Noemi sabe que o Shadai com o qual ela pode deixar sua amargura é o Javé que a trouxe para casa.

Conta-se a história de um pregador que usava como ilustração os fios emaranhados do avesso de uma tapeçaria, destacando que grande parte da experiência desta vida "debaixo do sol", neste mundo decaído e afligido pelo pecado, em todos os seus diferentes caminhos, geralmente nos parece ser uma confusão de cores sem relação alguma, fios soltos e nós indesembaraçaveis. 

Apenas quando o outro lado da tapeçaria se torna visível é que esses mesmos fios nos apresentam o que foi bordado: "Deus é Amor". Talvez não vejamos o outro lado, que nós chamamos de "outra história", que está sendo escrito ao longo e ao redor da história humana a qual nós lemos às vezes de maneira tão dolorosa. Mas a fé é a garantia divina de que esse outro lado existe, e de que, no seu amor, até mesmo o sofrimento tem um significado.

Este é um tema exemplificado em outras passagens das Escrituras. Quando o salmista ficou desesperado por causa da prosperidade dos perversos e da aparente futilidade de uma vida honesta, de modo que até a sua própria fé parecia estar sendo tragada pela calamidade e pela dúvida, ele achou que era "mui pesada tarefa" tentar compreendê-lo. "Até que entrei no santuário de Deus": então o homem perverso e ele mesmo foram vistos a uma nova luz. Ele pôde, apesar da contínua incerteza, exclamar: "Todavia, estou sempre contigo, quanto a mim, bom é estar junto a Deus; no Senhor Deus ponho o meu refúgio."

 Davi também, no Salmo 30, chegou a "clamar" a Deus pedindo ajuda. Ele experimentou o que chama de "ira" de Deus. Ele chora e suplica a Deus, e descobre que até mesmo a profunda tristeza pode produzir alegria. O visitante noturno que chega vestido de "choro" é transfor­mado pela luz do dia em exclamações de alegria.42

Nosso Senhor Jesus, também, ajudou os discípulos a entenderem suas perplexidades e dúvidas a uma nova luz e de uma perspectiva diferente. Quando, falando do sofrimento de um homem que nascera cego, eles perguntaram a Jesus "Por quê?" Eles não foram informados da causa ativa do sofrimento, mas apenas da causa final: "para que se manifestem nele as obras de Deus".43

Mas é na própria pessoa de Cristo que a plena revelação desta verdade se torna clara. O Novo Testamento o apresenta como o servo sofredor de Deus, como o Cordeiro de Deus sobre o qual foram colocados os pecados e as dores do mundo. Em Cristo, e em particular na vida de Cristo derramada na morte da cruz, o próprio Deus entrou e compartilhou das profundezas do sofrimento e do pecado deste mundo. 

Ele assumiu sobre os seus ombros a responsabilidade de resolver este assunto. Na horrível ruptura da comunhão entre o Pai e o Filho, focalizada no grito de abandono, Deus demonstrou o seu desejo de que a graça preciosa fosse conhecida em cada separação e sofrimento humano; ele ouve cada oração com o grito: "Meu Deus, por quê?" Além disto, com espantosa condescendência, ele nos convida a lançar sobre ele nosso pecado e nosso sofrimento, e até mesmo, poderíamos dizer, a desabafar sobre ele nossa ira, pois ele a pode suportar. 

Não é isto que acontece em alguns daqueles difíceis salmos "imprecatórios", quando o autor dá vasão à sua ira?

Frank Lake cita Robert Leighton, arcebispo de Glasgow no século XVII, que escreveu a uma mulher muito deprimida: "Eu a convido a lançar a sua raiva 110 seio de Deus." Então Lake prossegue, dizendo o seguinte em um parágrafo muito comovente:

O propósito da cruz de Cristo é atrair sobre ele a justa ira dos inocentes aflitos, que não podem se defender nem se vingar ade­quadamente para dar um fim à injustiça do momento e que tendem, portanto, a adiar e inevitavelmente transferir a reação, de modo que outras pessoas, relativa ou totalmente inocentes, vêm a sofrer. Cristo foi crucificado para que agora a nossa ira possa se esgotar, obedientemente e na fé, ferindo aquele que foi providenciado, o Cordeiro de Deus. Pecado passa a ser, então, "não crer em Jesus", não confiar nele para assumi-la e, ao assumi-la, acabar com ela.44

Precisamos aprender, na vida pessoal e pastoral, a aplicar o evangelho da graça de Deus em Cristo às mais profundas neces­sidades emocionais. Nossos sentimentos também estão dentro do escopo da providência de Deus.

Neste primeiro capítulo de Rute, Noemi compartilhou conosco a sua fé em Deus. É uma fé cujo brilho contrasta com as trevas dos seus sofrimentos. Ela viu a mão do Senhor na restauração da bênção de Belém; reconheceu a mão divina levantando-se contra ela na amarga experiência da morte; buscou o seu cuidado e proteção para Órfã e Rute; deu testemunho do Todo-poderoso na dor, quando de sua volta às antigas amizades. Esta é uma fé e uma confiança em Javé que reluz maravilhosamente na tela de fundo obscura e cheia de dúvidas dos dias em que os juizes julgavam. É a fé em Javé que levou Rute a confiar nele: a fé na qual se baseiam os subsequentes capítulos de nossa história.

Rute e Boaz assumem os papéis principais no restante do livro. Noemi, porém, volta no capítulo 2 de Rute como a intérprete à luz da providência de Deus; e, em Rute 3 e 4, ela é o agente de bênçãos divinas providenciais aos outros.

 

 

 

 

APRENDENDO COM JABES

  APRENDENDO COM JABES O m enino  p rodígio da  g enealogia!   Alguém já disse certa vez que existe muito pouca diferença entre as pessoas –...