terça-feira, 13 de dezembro de 2022

APRENDENDO COM RUTE

APRENDENDO COM RUTE  

A fé de Rute (Rute l:14b-18)

Órfã com um beijo se despediu de sua sogra, porém Rute se apegou a ela. Disse Noemi: Eis que tua cunhada voltou ao seu povo e aos seus deuses; também tu, volta após a tua cunhada. Disse, porém, Rute: Não me instes para que te deixe, e me obrigue a não seguir-te; porque aonde quer que fores, irei eu, e onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. Onde quer que morreres, morrerei eu, e aí serei sepultada; faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver, se outra cousa que não seja a morte me separar de ti. Vendo, pois, Noemi que de todo estava resolvida a ir com ela, deixou de insistir com ela.

Enquanto Órfã deu prova do seu amor na obediência ao desejo de Noemi de que partisse para se casar novamente, Rute demonstrou o seu amor tornando-se sua filha. 

Lemos que Rute se apegou a Noemi (versículo 14). Este verbo é a palavra que expressa um "apego" fiel e sincero em um relacionamento pessoal, como o do homem com a esposa no jardim do Éden. 

Também é usado em relação à sincera fidelidade que Deus espera do povo da aliança em resposta à sua iniciativa da graça salvadora. Rute, a moabita, ex-adoradora de Camos, está demonstrando uma qualidade de vida característica do povo de Javé.

Apesar de Noemi citar o exemplo de Órfã e da óbvia adequabilidade de que Rute permaneça com o "seu povo", e apesar de que, de acordo com a sabedoria humana, uma adoradora de Camos devesse obviamente permanecer onde os "seus deuses" eram adorados, Rute insiste em ficar com Noemi. 

O nosso autor apresenta aqui as palavras de Rute, sua clássica e bela afirmação de fidelidade, determinação e compromisso de amor. Rute quer compartilhar do futuro de Noemi: sua viagem, seu lar, sua fé. É a promessa de uma fidelidade sincera na vida e para toda a vida. Ou, por que não dizer, além da vida: os membros de uma família partilhavam do mesmo chão ao serem sepultados, pelo menos na Palestina primitiva; e supomos que isto também acontecia com o povo de Rute. Como diz Leon Morris, a firme determinação de Rute é que nada, nem mesmo a morte, vá separá-la de Noemi. 

E no centro desta expressão de amor e compro­misso para com Noemi (na viagem, no lar, na família, na vida e na morte) está o compromisso de adorar o Deus de Noemi. Embora, num certo sentido, seja verdade que Rute talvez pensasse que uma mu­dança para Belém poderia implicar a necessidade de reconhecer "o deus de Belém", num outro, a sua fé mostra-se explicitamente mais profunda. 

Rute está disposta a colocar nos seus lábios o nome do Deus da aliança de Noemi, Javé, o Senhor, numa determinada profissão de fé naquele que fundamenta o seu juramento. Faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver: esta expressão deveria incluir um gesto invocando a punição de Javé sobre ela, caso deixasse de cumprir o seu voto.

A fé de Noemi com certeza era tão eficaz, mesmo na adversidade, apontando para o governo soberano de Javé, que Rute, através do testemunho de Noemi, foi agora capaz de exercer a sua própria fé no Deus dela e de se considerar agora como parte do povo da aliança de Javé. Não teria sido precisamente a fé de Noemi, em meio às in­certezas, que mostrou a Rute o Senhor?

Com que frequência o Senhor usa as experiências do seu povo, especialmente em períodos de aflição e dificuldades, para atrair outros a si! Quando Moisés foi ao encontro de Jetro, seu sogro, ele contou "tudo o que o Senhor havia feito a Faraó e aos egípcios por amor de Israel, todo o trabalho que passaram no Egito, e como o Senhor os livrara." Jetro se regozijou pelo livramento cheio de graça de Deus: "Agora sei que o Senhor é maior que todos os deuses."

Da mesma forma, Paulo, preso sob a guarda romana, o que ele considerava como parte de sua "incumbência" para com Cristo, escreve aos leitores em Filipos: "Quero ainda, irmãos, cientificar-vos de que as cousas que me aconteceram têm antes contribuído para o progresso do evangelho." Por meio dos seus sofrimentos a igreja foi incitada a uma renovada devoção e Cristo foi pregado.

Aqui, nesta passagem, o Senhor está atraindo Rute à fé, certamente usando como testemunho persuasivo a experiência da graça de Noemi através da aflição. Um Deus que se revela no vale das sombras é digno de nossa confiança também nos dias de maior conforto.

 Noemi ou Mara? (1:19-22)

Então ambas se foram, até que chegaram a Belém; sucedeu que ao chegarem ali, toda a cidade se comoveu por causa delas, e as mulheres diziam: Não é esta Noemi? Porém ela lhes dizia: Não me chameis Noemi, chamai-me Mara; porque grande amargura me tem dado o Todo-poderoso. Ditosa eu parti, porém o Senhor me fez voltar pobre; por que, pois, me chamareis Noemi, visto que o Senhor se manifestou contra mim, e o Todo-poderoso me tem afligido? Assim voltou Noemi da terra de Moabe, com Rute, sua nora, a moabita; e chegaram a Belém no princípio da sega das cevadas.

Quando Noemi viu que Rute estava "resolvida", firmemente de­terminada por uma decisão inabalável (1:18), ela concordou, e as duas viúvas seguiram juntas para Belém. Quando chegaram, os homens, ao que parece, estavam fazendo a colheita da cevada, no começo da sega, isto é, em abril. 

Mas as mulheres (Knox as restringe a "todas as fofoqueiras"!) começaram a fazer perguntas. Noemi estivera fora durante muitos anos. Ela partira com marido e dois filhos, e voltava agora viúva com uma nora viúva. Talvez sua aparência falasse da amargura que tinham experimentado. Quando lhe perguntaram: Não é esta Noemi?, o jogo de palavras com o significado do seu nome é comovente: Não me chameis Noemi (que significa "alegre"); antes, chamai-me Mara (que significa "amargura"). Conforme percebemos em 1:13, ela crê que as amargas experiências que enfrentou vieram da mão de Deus: "porque grande amargura me tem dado o Toâo-Poderoso."

 O Todo-poderoso

O título divino traduz a palavra hebraica Shadai, geralmente usada no Pentateuco e particularmente em Génesis. Discordam os autores sobre o significado de sua raiz, sugerindo alguns que mais provavel­mente a etimologia relacione "Shadai" com "montanha", no sentido qualitativo de possuir durabilidade, solidez e veracidade.

 Contudo, se verificarmos o seu uso em Génesis, descobriremos três referências que podem esclarecer o seu significado, levando-nos ao pensamento de Noemi ao usá-lo.

Primeiro, em Génesis 17:1, descobrimos que Deus fez a um Abraão de noventa e nove anos de idade a promessa de gerar filhos, e se revela como "Deus Todo-poderoso". Aqui ele é o Deus que pode transfor­mar a impotência do homem em bênção, para o bem do próprio homem e para a sua glória. Segundo, em Génesis 43:14, o velho Jacó, em sua perplexidade, concorda relutantemente com que os seus angustiados filhos retornem ao Egito, levando o irmão mais moço para o (até então) ainda não identificado José: "Deus Todo-poderoso vos dê misericórdia perante o homem." "Shadai" aqui fala da espe­rança da proteção de Deus para um período de incertezas. 

E, terceiro, em Génesis 49:25, a profecia de Jacó sobre os seus filhos fala da futura "fertilidade" de José apesar de todo o "embaraço", e o atribui ao "Todo-poderoso, o qual te abençoará com bênçãos dos altos céus, com bênçãos das profundezas, com bênçãos dos seios e da madre." Depois de treze anos de sofrimento e isolamento na prisão, José é elevado a primeiro ministro do Egito! Esse tipo de bênção é característico de Shadai.

E é com referência a esse aspecto do caráter de Javé descrito por "Shadai" ("o Deus que é melhor quando o homem está na pior", como J. A. Motyer uma vez expressou) que Noemi apresenta a estrutura de sua fé naquele em quem ela deposita o seu sofrimento. É como se ela dissesse: "Vocês podem ver a amargura que tenho experimentado: a fome, a perda de entes queridos, as dúvidas, as separações, o aparente desespero; mas eu conheço Deus como Shadai, e posso deixar as explicações, e até mesmo a responsabilidade, desta amargura com ele."

Será que ela não estava conseguindo enfrentar a realidade? Será que Noemi estava errada em pensar assim? Será que ela estava acusando Deus do mal que sofria, usando aquele tipo de astuta explicação mais apropriada aos inúteis consoladores de Jó ao invés de observações que eram fruto de uma fé amadurecida?

 Não nos parece assim. Antes, parece que é exatamente a chave de como uma pessoa de fé aprende a enfrentar a dor e a incerteza das muitas tribulações da vida. Em um mundo, no qual, da perspectiva humana, as palavras do Pregador parecem sobremodo verdadeiras ("Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento"), suas outras palavras podem fornecer o contexto completo, a perspectiva mais ampla dentro da qual a "vaidade" pode ser enfrentada: "não sabes as obras de Deus, que faz todas as cou­sas". 

É a pessoa que conhece o seu Deus como Shadai que pode perceber a outra história: que até mesmo a aparente falta de signifi­cado do sofrimento terreno faz parte de um padrão da providência, e pode ser enfrentada quando colocada nas mãos de Deus. E não apenas Shadai, pois o Deus que se revelou nessa característica é o Deus que também declarou o seu nome ao seu povo: Javé, um nome que aponta para o seu amor expresso na aliança. E Noemi sabe que o Shadai com o qual ela pode deixar sua amargura é o Javé que a trouxe para casa.

Conta-se a história de um pregador que usava como ilustração os fios emaranhados do avesso de uma tapeçaria, destacando que grande parte da experiência desta vida "debaixo do sol", neste mundo decaído e afligido pelo pecado, em todos os seus diferentes caminhos, geralmente nos parece ser uma confusão de cores sem relação alguma, fios soltos e nós indesembaraçaveis. 

Apenas quando o outro lado da tapeçaria se torna visível é que esses mesmos fios nos apresentam o que foi bordado: "Deus é Amor". Talvez não vejamos o outro lado, que nós chamamos de "outra história", que está sendo escrito ao longo e ao redor da história humana a qual nós lemos às vezes de maneira tão dolorosa. Mas a fé é a garantia divina de que esse outro lado existe, e de que, no seu amor, até mesmo o sofrimento tem um significado.

Este é um tema exemplificado em outras passagens das Escrituras. Quando o salmista ficou desesperado por causa da prosperidade dos perversos e da aparente futilidade de uma vida honesta, de modo que até a sua própria fé parecia estar sendo tragada pela calamidade e pela dúvida, ele achou que era "mui pesada tarefa" tentar compreendê-lo. "Até que entrei no santuário de Deus": então o homem perverso e ele mesmo foram vistos a uma nova luz. Ele pôde, apesar da contínua incerteza, exclamar: "Todavia, estou sempre contigo, quanto a mim, bom é estar junto a Deus; no Senhor Deus ponho o meu refúgio."

 Davi também, no Salmo 30, chegou a "clamar" a Deus pedindo ajuda. Ele experimentou o que chama de "ira" de Deus. Ele chora e suplica a Deus, e descobre que até mesmo a profunda tristeza pode produzir alegria. O visitante noturno que chega vestido de "choro" é transfor­mado pela luz do dia em exclamações de alegria.42

Nosso Senhor Jesus, também, ajudou os discípulos a entenderem suas perplexidades e dúvidas a uma nova luz e de uma perspectiva diferente. Quando, falando do sofrimento de um homem que nascera cego, eles perguntaram a Jesus "Por quê?" Eles não foram informados da causa ativa do sofrimento, mas apenas da causa final: "para que se manifestem nele as obras de Deus".43

Mas é na própria pessoa de Cristo que a plena revelação desta verdade se torna clara. O Novo Testamento o apresenta como o servo sofredor de Deus, como o Cordeiro de Deus sobre o qual foram colocados os pecados e as dores do mundo. Em Cristo, e em particular na vida de Cristo derramada na morte da cruz, o próprio Deus entrou e compartilhou das profundezas do sofrimento e do pecado deste mundo. 

Ele assumiu sobre os seus ombros a responsabilidade de resolver este assunto. Na horrível ruptura da comunhão entre o Pai e o Filho, focalizada no grito de abandono, Deus demonstrou o seu desejo de que a graça preciosa fosse conhecida em cada separação e sofrimento humano; ele ouve cada oração com o grito: "Meu Deus, por quê?" Além disto, com espantosa condescendência, ele nos convida a lançar sobre ele nosso pecado e nosso sofrimento, e até mesmo, poderíamos dizer, a desabafar sobre ele nossa ira, pois ele a pode suportar. 

Não é isto que acontece em alguns daqueles difíceis salmos "imprecatórios", quando o autor dá vasão à sua ira?

Frank Lake cita Robert Leighton, arcebispo de Glasgow no século XVII, que escreveu a uma mulher muito deprimida: "Eu a convido a lançar a sua raiva 110 seio de Deus." Então Lake prossegue, dizendo o seguinte em um parágrafo muito comovente:

O propósito da cruz de Cristo é atrair sobre ele a justa ira dos inocentes aflitos, que não podem se defender nem se vingar ade­quadamente para dar um fim à injustiça do momento e que tendem, portanto, a adiar e inevitavelmente transferir a reação, de modo que outras pessoas, relativa ou totalmente inocentes, vêm a sofrer. Cristo foi crucificado para que agora a nossa ira possa se esgotar, obedientemente e na fé, ferindo aquele que foi providenciado, o Cordeiro de Deus. Pecado passa a ser, então, "não crer em Jesus", não confiar nele para assumi-la e, ao assumi-la, acabar com ela.44

Precisamos aprender, na vida pessoal e pastoral, a aplicar o evangelho da graça de Deus em Cristo às mais profundas neces­sidades emocionais. Nossos sentimentos também estão dentro do escopo da providência de Deus.

Neste primeiro capítulo de Rute, Noemi compartilhou conosco a sua fé em Deus. É uma fé cujo brilho contrasta com as trevas dos seus sofrimentos. Ela viu a mão do Senhor na restauração da bênção de Belém; reconheceu a mão divina levantando-se contra ela na amarga experiência da morte; buscou o seu cuidado e proteção para Órfã e Rute; deu testemunho do Todo-poderoso na dor, quando de sua volta às antigas amizades. Esta é uma fé e uma confiança em Javé que reluz maravilhosamente na tela de fundo obscura e cheia de dúvidas dos dias em que os juizes julgavam. É a fé em Javé que levou Rute a confiar nele: a fé na qual se baseiam os subsequentes capítulos de nossa história.

Rute e Boaz assumem os papéis principais no restante do livro. Noemi, porém, volta no capítulo 2 de Rute como a intérprete à luz da providência de Deus; e, em Rute 3 e 4, ela é o agente de bênçãos divinas providenciais aos outros.

 

 

 

 

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