Em Genesis 32 vemos uma luta muito difícil de entender. Jacó luta contra um Anjo (?), evento interpretado ali e em toda a Bíblia como se ele lutasse contra o próprio Deus (?!?).
Isto já é estranho ao leitor contemporâneo como está.
Mas a questão se agrava. No trecho, Jacó fez passar toda a sua família por um ribeiro, ficando para trás sozinho. Ali ele teria enfrentado algo durante toda a noite.
"Jacó, porém, ficou só; e lutou com ele um homem, até que a alva subiu.E vendo este que não prevalecia contra ele, tocou a juntura de sua coxa, e se deslocou a juntura da coxa de Jacó, lutando com ele.E disse: Deixa-me ir, porque já a alva subiu. Porém ele disse: Não te deixarei ir, se não me abençoares.E disse-lhe: Qual é o teu nome? E ele disse: Jacó.Então disse: Não te chamarás mais Jacó, mas Israel; pois como príncipe lutaste com Deus e com os homens, e prevaleceste.E Jacó lhe perguntou, e disse: Dá-me, peço-te, a saber o teu nome. E disse: Por que perguntas pelo meu nome? E abençoou-o ali."(Gênesis 32:24-29)
Observe-se que o oponente se rende diante do amanhecer. Ele não consegue simplesmente ir embora ou derrotar Jacó. Ora qual o problema de amanhecer? Por que o alvorecer é suficiente para fazê-lo desistir avidamente da luta?
Outro ponto intrigante: se ele tem tanto poder a ponto de deslocar junturas do corpo humano com um simples toque, como não consegue se desvencilhar de Jacó com outro toque destes?
Alguns exegetas já identificaram a questão: o autor Javista tomou uma narrativa de origem do povo de Israel, do Norte modificando-o. Na narrativa original, Jacó é um herói que vence guardião sobrenatural que zela pela passagem de um lugar sagrado, matando quem por ali passa.
(Este tipo de narrativa, na qual o herói enfrenta um troll, monstro, ogro, ninfa ou gênio, é extremamente comum na antiguidade)
Na narrativa original, transmitida oralmente (ou talvez presente em textos perdidos do Reino do Norte), Jacó teria sido capaz de derrotar o guardião segurando-o; ou se igualando a ele fisicamente; ou talvez usando de alguma artimanha capaz de aprisioná-lo sobrenaturalmente. Mas, nesta mesma narrativa original (impossível de ser recuperada em sua totalidade), o confronto deixa em Jacó uma sequela terrível, uma cicatriz de batalha por assim dizer.
Se a narrativa original não pode ser recuperada em sua totalidade, temos contudo algumas pistas deste tal guardião sagrado que Jacó enfrentou. Observe que ele só surge a noite, e que teme a luz do dia, da qual foge desesperadamente.
Seria um Ghoul? Na narrativa original, ele teria comido (não tocado!) a juntura da coxa de Jacó (o que explica bem a proibição do versículo 32. De qualquer forma, Jacó sabe muito da fraqueza daquele guardião e a usa a seu favor.
Note-se também que Jacó tenta descobrir o nome do oponente: na crença do antigo oriente próximo, saber o nome de um gênio, espírito ou espectro permite o controle e poder sobre a criatura. Ela se ofende com a pergunta de Jacó...
Ou seja, uma criatura que teme o dia, pode ser controlada caso se conheça o nome e não consegue escapar de ser presa por um homem não pode ser Deus. Também dificilmente se encaixa como "anjo", a despeito do autor dizer que ela tem o poder de paralisar pessoas somente com um toque.
Por fim, note-se que os textos mais antigos da Bíblia não fazem distinção clara entre Deus e qualquer criatura espiritual sob sua autoridade (1 Sm 16, 1 Sm 24 Jz 9:23, 1 Rs 22, entre outros). Lidar com elas é lidar com Deus. Assim, se Jacó luta, e vence uma de suas criaturas, ele teria lutado com o próprio Deus na mentalidade dos antigos israelitas.
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