A Outra
Face de Esaú - Rejeitado Por Deus?
O Antigo Testamento é um texto escrito de um modo sutil, sem muitos detalhes sobre o círculo íntimo da vida dos personagens que apresenta em suas histórias.
Entretanto, quando se refere a Esaú, e sobre como perdera a benção de Isaque
para seu irmão Jacó, temos neste episódio uma das cenas mais emocionalmente
tocantes do Antigo Testamento.
Jacó, vestido com as roupas de Esaú, toma a benção de seu irmão mais velho. Ele
deixa o local onde Isaque, que já não enxergava mais, pois era avançado em
idade, estava. Logo em seguida se dá esta cena emocionante:
"E
aconteceu que, acabando Isaque de abençoar a Jacó, apenas Jacó acabava de sair
da presença de Isaque seu pai, veio Esaú, seu irmão, da sua caça; E fez também
ele um guisado saboroso, e trouxe-o a seu pai; e disse a seu pai: Levanta-te,
meu pai, e come da caça de teu filho, para que me abençoe a tua alma.
E disse-lhe Isaque seu pai: Quem és tu? E ele disse: Eu sou teu filho, o teu
primogênito Esaú. Então estremeceu Isaque de um estremecimento muito
grande, e disse: Quem, pois, é aquele que apanhou a caça, e ma trouxe? E
comi de tudo, antes que tu viesses, e abençoei-o, e ele será bendito.
Esaú, ouvindo as palavras de seu pai, bradou com grande e mui amargo
brado, e disse a seu pai: Abençoa-me também a mim, meu pai. E ele disse:
Veio teu irmão com sutileza, e tomou a tua bênção.
Então disse ele: Não é o seu nome justamente Jacó, tanto que já duas vezes me
enganou? A minha primogenitura me tomou, e eis que agora me tomou a minha
bênção. E perguntou: Não reservaste, pois, para mim nenhuma bênção?
Então respondeu Isaque a Esaú dizendo: Eis que o tenho posto por senhor sobre
ti, e todos os seus irmãos lhe tenho dado por servos; e de trigo e de mosto o
tenho fortalecido; que te farei, pois, agora, meu filho?
E disse Esaú a seu pai: Tens uma só bênção, meu pai? Abençoa-me também
a mim, meu pai. E levantou Esaú a sua voz, e chorou." Gênesis 27:30-38
Claro que este acontecimento é notável, e emocionante de se ler, porém o que é ainda mais intrigante é a forma que a Bíblia usa a linguagem para descrever esta dramática cena, acentuando-a e potencializando-a.
Em geral a Bíblia não revela muitos detalhes, suas descrições são mínimas, especialmente sobre as emoções dos seus personagens.
O Antigo
Testamento, é mais como se fosse um rádio do que uma televisão. É convidativo a
que seus leitores participem da história, usando de sua imaginação. Mas esta
passagem é diferente, em sua expliciticidade e em sua profundidade psicológica
do drama de Esaú.
Como
expectadores, nós acabamos simpatizando com o caso de Isaque e Esaú. Podemos
sentir a surpresa de Isaque ao perceber que havia sido enganado. Nos
identificamos também com Esaú, cuja primeira reação não foi de traição ou
desejo de vingança, mas de profunda e cortante dor na alma, ("Abençoa-me
também a mim, meu pai") .
O Drama
de Esaú
É
chocante a resposta de Isaque, que nada mais poderia fazer, "que
te farei, pois, agora, meu filho?", e a agonia do choro de Esaú. Nós
sabemos que ele é homem do campo, caçador, duro algumas vezes, impetuoso
outras, mas ele não é um homem dado às lágrimas.
A cena
dos dois juntos, pai e filho, ludibriados e desapontados, roubados daquilo que
deveria ser um momento de grande afeição e intimidade - o filho serve e
alimenta ao pai, o pai abençoa ao filho - é muito tocante. Imagine a pintura
que Rembrandt (um dos maiores nomes da história da arte europeia) poderia ter
feito dessa cena.
Este
nível de detalhes não é acidental. Tudo na Torah (os livros de Moisés) tem uma
função, um significado. Aqui, o texto quer que simpatizemos mais com Esaú, para
podermos entender esta história fantástica, cheia de nuances, que envolvem os
patriarcas de duas nações.
Não que
queira nos fazer sentir que Esaú seja o escolhido para herdar e ser o portador
da Aliança de Deus com Abraão, ou de que a história deveria ser mudada.
Realmente não é isso. No Gênesis, as mães conheciam seus filhos melhor do que
os pais.
E Rebeca
favorece Jacó. Esaú, o caçador, o homem que desprezou sua primogenitura, pois a
vendeu por um prato de comida, claramente não seria o que levaria o
conhecimento do Senhor adiante de sua geração. Faltava-lhe fé de que nem só de
pão viveria o homem.
O
concerto feito em Abraão precisava passar à Jacó, que persistentemente buscava
essa bênção de Deus.
Ainda
assim, a Torah vai para além desses fatos, e de modo não usual, leva-nos à
empatia para com a causa de Esaú, fazendo-nos entrar em seu mundo, para vermos
as coisas da perspectiva dele. Porque seria assim?
O Caráter
de Esaú
Olhando
para Esaú e seus descendentes, com mais cuidado, vemos que ele de fato é
abençoado por seu pai Isaque:
"Então respondeu Isaque, seu
pai, e disse-lhe: Eis que a tua habitação será nas gorduras da terra e no
orvalho dos altos céus. E pela tua espada viverás, e ao teu irmão servirás.
Acontecerá, porém, que quando te assenhoreares, então sacudirás o seu jugo do
teu pescoço." Gênesis 27:39-40
Esta
benção de Isaque, mostra que tanto Esaú quanto Jacó poderiam se beneficiar sem
um diminuir ao outro. E prediz que a supremacia de Jacó somente perduraria se
ele não a usasse de forma errada.
Se ele
agisse de forma a diminuir ou oprimir a seu irmão, Esaú simplesmente
"sacudiria o seu jugo do seu pescoço", significando que a vontade de
Deus era a coexistência das duas nações irmãs.
Um outro
fato que mostra que Esaú se importava com seu pai Isaque, foi quando do seu
casamento com duas mulheres hititas, e "estas foram para Isaque e Rebeca
uma amargura de espírito" Gênesis 26:35.
Quando
ele entendeu que a sua união com as mulheres hititas não era do agrado de seu
pai, ele tenta consertar a situação tomando uma terceira esposa - Maalate,
filha de Ismael.
"Vendo também Esaú que as
filhas de Canaã eram más aos olhos de Isaque seu pai, Foi Esaú a Ismael, e
tomou para si por mulher, além das suas mulheres, a Maalate filha de Ismael,
filho de Abraão, irmã de Nebaiote." Gênesis 28:8-9
Ele porém
não havia percebido que Ismael não tinha sido escolhido por Deus para levar o
seu pacto e a sua aliança às próximas gerações. Esaú não foi muito inteligente
em suas ações, mas ninguém pode negar que ele se importa com o que seu pai
pensa, e não queria causar-lhe motivo de tristeza.
Esaú e Jacó se Reencontram Após Vinte e Dois Anos.
O terceiro acontecimento que revela um pouco mais sobre o caráter de Esaú, se dá quando os dois irmãos se encontram novamente após vinte anos, em uma das mais profundas e emocionantes passagens da bíblia. Jacó está tomado pelo temor, antes mesmo de encontrar com seu irmão.
Temor
este que o leva a diversas preparações, tais como presentes, orações e até
mesmo guerra. Na noite anterior ao encontro, ele luta com um adversário
desconhecido e sem nome. E quando eles finalmente se encontram, Esaú corre para
encontrar seu irmão Jacó, e o abraça, e chora, e mostra que todo o rancor que
poderia ter, havia desaparecido.
Todo o
temor e o drama do reencontro com seu irmão, aconteceram apenas internamente,
na alma de Jacó, pois Esau se irava facilmente, mas também facilmente se
esquecia das eventuais desavenças.
Fato que
nos chama a atenção para a necessidade do concerto e do perdão. Jacó ficou
vinte anos distante de seu irmão, mas ele como homem de Deus sentia-se
incomodado, sabia que havia algo que não estava correto em sua vida.
Quando
foi enganado por seu tio Labão, dando-lhe a filha mais velha em casamento, Lia,
ao invés de Raquel, certamente ele sentiu o peso do seu passado, pois foi
justamente o que tinha feito com Esaú. E Jacó precisava voltar, e se consertar
com seu irmão mais velho.
A
Grandeza do Perdão
E em uma
atitude de homem, e de homem de Deus, ele vai ao encontro de Esaú, mesmo
temendo por sua vida. Jacó estava a aprender a assumir as consequências de suas
ações. E ele não mais buscava o reconhecimento humano, não aspirava mais ser
maior do que seu irmão, antes o chamou de senhor, e se fez como seu servo. Jacó
parecia conhecer as palavras de Jesus:
"Portanto, aquele que se
tornar humilde como este menino, esse é o maior no reino dos céus." Mateus
18:4
É lindo
ver também, que se Jacó teve esta sublime atitude de buscar o perdão, e de
humildade, Esaú não foi menos grandioso, pois veja que a iniciativa do perdão
parte de Esaú, que correu ao encontro de Jacó, e o abraçou e o beijou, e
choraram juntos. Aqui temos a revelação de uma grande verdade, para sermos
perdoados, temos também que perdoar:
"Se, porém, não perdoardes
aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas
ofensas." Mateus 6:15
Com isso,
depois da reconciliação, as bençãos de Deus recaem sobre ambos, cada qual de
maneiras diferentes, específicas, segundo o chamado que cada um recebeu. A
quarta passagem, Gênesis 36, já nos mostra uma lista, com a descendência de
Esaú, que contém dois significados muito interessantes, mesmo que seu
entendimento esteja implicitamente no texto.
As
Implicações de Ser O Escolhido
O
primeiro significado, está resumido na frase "E estes são os reis
que reinaram na terra de Edom, antes que reinasse rei algum sobre os filhos de
Israel" Gênesis 36:31.
O segundo
traz o contraste entre o fechamento do capítulo 36 e o início do capítulo 37:
"E estes são os nomes dos
príncipes de Esaú, segundo as suas gerações, segundo os seus lugares, com os
seus nomes" Gênesis 36:40 ... Enquanto isso, Jacó habitou na terra de
Canaã, como peregrino, quase que como um estrangeiro (Gênesis 37:1).
O texto
não poderia ser mais claro em suas implicações, os descendentes de Esaú se
estabeleceram geograficamente e politicamente, muito tempo antes dos filhos de
Israel.
Eles não
enfrentaram as reviravoltas, os dramas e as dificuldades da história da
aliança, do concerto de Deus com Abraão - exílio, escravidão, a redenção e os
quarenta anos no deserto.
Embora a
habitação dos dois irmãos gêmeos seria "nas gorduras da terra e no orvalho
dos altos céus", para Esaú isto acontece rapidamente, diretamente, sem
maiores intercorrências entre a promessa e o seu cumprimento.
Mas para
Jacó, isso não se dá desta forma. E olha que ele era o "filho da promessa".
O quinto
elemento a ser considerado, é o tipo de relacionamento que se formou entre os
Israelitas e os Edomitas (os descendentes de Esaú). Quando da saída do povo do
Egito, em direção à conquista da terra prometida, Deus instrui os Israelitas:
"Então o Senhor me falou,
dizendo: Tendes rodeado bastante esta montanha; virai-vos para o norte. E dá
ordem ao povo, dizendo: Passareis pelos termos de vossos irmãos, os filhos de
Esaú, que habitam em Seir; e eles terão medo de vós; porém guardai-vos bem.
Não vos envolvais com eles, porque não vos darei da sua terra nem ainda a
pisada da planta de um pé; porquanto a Esaú tenho dado o monte Seir por
herança." Deuteronômio 2:2-5
E não é
menos enfático este mandamento:
"Não abominarás o edomeu,
pois é teu irmão" Deuteronômio 23:7
Durante o
tempo bíblico, aconteceram periódicos momentos de tensão e conflitos entre os
Israelitas e os Edomitas (os descendentes de Esaú), mas como norma os
Israelitas sempre foram instruídos a respeitar os Edomitas e a sua terra. Esses
elementos combinados, nos permitem chegar a algumas conclusões.
A mais
simples, vemos que há pessoas aqui que fogem a todos os estereótipos ou
categorizações convencionais. Esaú é um filho que é amado por Isaque, e que ama
seu pai em retorno. Isto é algo tão verdadeiro que o rabino Shimon ben Gamliel
reconheceu:
"Nenhum homem honrou o seu
pai, como eu honrei ao meu, mas eu descobri que Esaú honrou seu pai ainda mais
do que eu." (Shimon ben Gamliel)
Há uma
tendência entre os comentaristas, com propósitos pedagógicos, em separar os
personagens bíblicos em bons e maus. Não raramente, eles são classificados ou
como heróis ou como vilões. Mesmo os personagens não-vilões, se não forem
heroicos, tendem a ser interpretados como os "maus" da história.
Mas sob
esta interpretação, há uma camada que nos ensina uma importante mensagem,
embora ela demande maturidade para compreendê-la: Mesmo os heróis têm suas
falhas, e os não-heróis as suas virtudes, e estas virtudes são apreciadas por
Deus.
O Esaú
que emerge da Torah, não têm a fé de Abraão, nem a determinação de Isaque, nem
a persistência de Jacó, mas ele é humano e verdadeiro em essência, com todas as
suas emoções, com toda a sua transparência, ele não tenta parecer ser o que não
é. Há muita sinceridade e lealdade em Esaú.
Esta é
uma mensagem profunda que as escrituras nos trazem, assim como nós não podemos
prever o futuro e quais serão as ações divinas:
"e terei misericórdia de
quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer"
Êxodo 33:19
Do mesmo
modo, não podemos predizer onde a imagem de Deus irá brilhar em meio a
humanidade, a escolha divina é livre. Deus escolhe aquele que lhe bem aprouver,
Ele não está preso a nenhuma categorização humana, nem a nenhum tipo de
determinismo ou de acepção de pessoas.
O que Ele
busca é um coração sincero, verdadeiro, transparente, para ali deixar a sua
benção.
As
Implicações de Não Ser O Escolhido
Há ainda,
algo muito mais fundamental na história de Esaú, e que tem a ver com o conceito
de escolha, em si mesmo. O livro de Gênesis é uma profunda meditação sobre o
que é ser o escolhido, e sobre o que é não ser o escolhido. Não há dúvidas de
que o processo de eleição (espiritual), gera consequências profundas em ambos
os lados.
Jacó
descobriu que ser o escolhido pode levar a uma vida de altas demandas e de
muitas privações e sofrimento:
"E Jacó disse a Faraó: Os
dias dos anos das minhas peregrinações são cento e trinta anos, poucos e maus
foram os dias dos anos da minha vida" Gênesis 47:9.
Por outro
lado, não ser o escolhido é profundamente desorientador e inquietante. Vemos
isso acontecer por duas vezes no decorrer do Gênesis, quando Agar é mandada
embora por Sara, e nas divergências entre José e seus irmãos, e outra vez nas
relações entre Lia e Rachel.
"E possuiu também a Raquel,
e amou também a Raquel mais do que a Lia" Gênesis 29:30
O senso
de rejeição corta profundamente, e tão profundo que o Gênesis não hesita em
compará-lo com o sentimento de ser odiado. E quem se sente rejeitado, pode
odiar como resposta. Este é o motivo pelo qual os irmãos de José o odiavam,
chegando ao ponto de vendê-lo como escravo.
O amor
leva à escolha, mas a escolha causa constrangimento, que eleva as tensões e
pode acabar em conflitos e violência. É o mesmo que aconteceu bem no princípio
da humanidade, quando a rejeição de Deus pela oferta de Caim levou ao primeiro
homicídio.
Agora, a
mensagem que a história da vida de Esaú nos mostra é que a escolha de Jacó não
significou a sua rejeição. Esaú não é o escolhido, mas também não é rejeitado.
Ele não foi o escolhido para ser o portador do pacto e da aliança de Abraão,
mas também não foi rejeitado como pessoa humana, como um dos filhos de Deus,
como todos nós somos.
Esaú
também tinha a sua benção, seus descendentes e sua terra. Ele também teve
filhos que se tornaram reis e que reinaram. Ele também teve suas virtudes
reconhecidas, acima de tudo, o seu amor por seu pai Isaque.
O que o
texto bíblico quer nos dizer é que nem todos são escolhidos para levar a
aliança de Abraão à frente (pois teria que ser da sua descendência), mas todos
os homens são preciosos para Deus. Cada um de nós temos o nosso lugar no mundo
da fé. Todos temos as nossas virtudes, talentos e dons que são preciosos aos
olhos de Deus.
Mais
tarde na história de Israel, Deus dirá ao profeta Jonas, sobre sua misericórdia
para com os homens de Nínive:
"E disse o Senhor: Tiveste
tu compaixão da aboboreira, na qual não trabalhaste, nem a fizeste crescer, que
numa noite nasceu, e numa noite pereceu;
E não hei de eu ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que estão mais de
cento e vinte mil homens que não sabem discernir entre a sua mão direita e a
sua mão esquerda, e também muitos animais?" Jonas 4:10-11
E o Salmo
completaria:
"O Senhor é bom para todos,
e as suas misericórdias são sobre todas as suas obras." Salmos 145:9
Ser o
escolhido, não significa que outras pessoas sejam rejeitadas. Ter um
relacionamento com Deus, não significa negar que outros possam ter um tipo
diferente de relacionamento com Ele.
Jacó era
amado por sua mãe, Esaú por seu pai, mas Deus é pai e mãe, e é ainda mais do
que ambos, Ele é o Senhor que nos ama com amor incomparável e que de maneira
nenhuma lançará fora todo aquele que a Ele se chegar.
"Todo o que o Pai me dá virá
a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora" - João 6:37
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