O Evangelho de Marcos
O Evangelho[1] de Marcos é um livro anônimo.[2] Em lugar algum do livro encontramos referência ao nome do
seu autor. Contudo, podemos chegar a algumas conclusões através de evidências
externas e internas acerca de sua autoria.
1. Evidência Externa
A evidência externa é aquela que não se
encontra no corpo do texto original. Analisemos se é possível encontrar a
partir de testemunhos externos, indicações de sua autoria. Para isso
observaremos primeiro a ocorrência e uso do título do livro, e em seguida o
testemunho dos Pais da Igreja.
1.1. O título do livro
Naquele período da história literária cristã
não era costume entre os escritores pôr o seu nome como título do livro[3]. Adolf Pohl comenta que “uma referência autoral como
título soava tão estranha naquela época como hoje em dia”.[4] Era mais comum haver uma indicação do autor no cabeçalho
do livro, ou no seu desfecho.[5]
Ainda podemos afirmar que o autor deste
Evangelho não colocou seu nome em sua obra, porque ele era bem conhecido pelos
seus leitores. Se levarmos em conta a tradição da Igreja, então, o Evangelho de
Marcos foi um livro “encomendado”, logo, não haveria a necessidade de
autografá-lo. E mesmo que não fosse um livro encomendado, a hipótese de que o autor
era conhecido dos seus leitores não pode ser descartada como uma opção válida.
Somente os Evangelhos apócrifos possuíam a
praxe de colocar nome de personagens famosos como título em seus livros. Assim,
por exemplo, o “Evangelho de Pedro”, do século II, identifica-se ao dizer: “Eu,
porém, Simão Pedro...”.[6] Os escritores dos Evangelhos canônicos não tinham
necessidade de estampar os próprios nomes em seus livros, pois, eles queriam
destacar o seu conteúdo, e tinham consciência de que o real autor destes livros
era em sentido específico, o Senhor (Hb 2:3; 1 Pe 1:12).
O título tem como propósito apresentar o
conteúdo, e não o autor (Mc 1:1). E mesmo que o título fosse usado para
apresentar o autor, seria desnecessário, no caso deste Evangelho, pois, o seu
autor era conhecido por seus leitores.
Embora o título grego que acompanha o livro não
esteja originalmente no texto grego, ele se encontra em todas as listas
canônicas, e nas cópias de manuscritos antigos. Quanto a identificação do livro
que era feita entre os copistas da época, Adolf Pohl esclarece que
esta informação era fixada com um bilhete na haste de
madeira do rolo, o que era prático para quem procurava determinado rolo em uma
caixa de madeira ou barro. Mais tarde, quando a Bíblia passou a ser transmitida
em forma de códice, este título curto também pôde ser colocado na margem
superior de cada folha, para facilitar a procura de passagens.[7]
Por isso, podemos encontrar no Códice do Vaticano (B) e no Códice Sinaítico ()), ambos datados no século IV,
possuindo um título mais curto “Segundo Marcos”. Contudo, nas páginas de capa
das cópias, os títulos costumavam ser ampliados, resultando “Evangelho Segundo
Marcos”.
Podemos concluir que, estes títulos embora não
pertençam a forma original do Evangelho, foram acrescentados por causa do
cuidado de copistas cristãos num período posterior. Todavia, a sua autoria já
era um assunto pacífico entre os cristãos num período bem anterior. É possível
verificar que esse assunto era algo pacífico na Igreja Cristã em seus primeiros
séculos analisando algumas afirmações dos Pais da Igreja.
1.2. Os Pais da Igreja
A autoria de Marcos é sustentada pelos Pais da
Igreja a partir do início do século II. Uma importante constatação pode ser
feita na História Eclesiástica[8] escrita em 325[9], por Eusébio de Cesaréia (260-339), onde ele cita Pápias
de Hierápolis (70-140 d.C.) que escreveu uma obra intitulada “Exposição das
Palavras do Senhor”, essa obra perdeu-se, mas foram preservados alguns
fragmentos por Eusébio em sua História Eclesiástica. Eusébio de Cesaréia afirma
que
Por outro lado,
cremos necessário acrescentar, ao que já dissemos sobre Pápias, a tradição que
expõe a respeito de Marcos, que escreveu o Evangelho, dizendo assim: “O
presbítero dizia também o seguinte: Marcos, que foi o intérprete de Pedro,
escreveu fielmente, embora desordenadamente, tudo o que recordava sobre as
palavras e as ações do Senhor. De fato, ele não tinha ouvido o Senhor, nem o
havia seguido. Mais tarde, como já disse, ele seguiu a Pedro, que lhe dava
instruções conforme as necessidades, mas não como quem compõe um relato
ordenado das sentenças do Senhor. Assim, Marcos em nada errou, escrevendo
algumas daquelas coisas da forma como as recordava. Com efeito, sua preocupação
era uma só: não omitir nada do que tinha ouvido, nem falsificar nada do que
transmitia.” Esse é o relato de Pápias a respeito de Marcos.[10]
Se considerarmos Pápias como uma testemunha
digna de confiança, então podemos afirmar que a identificação de Marcos como
autor do Evangelho remonta à primeira geração de cristãos.[11]
Irineu de Lião confirmando esta autoria
declara que “quando Pedro e Paulo evangelizavam em Roma e aí fundavam a Igreja.
Depois da morte deles, também Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, nos
transmitiu por escrito o que Pedro anunciava.”[12]
Noutro lugar de sua obra, este autor continua indicando a autoria do Evangelho
da seguinte forma: “por isso, Marcos, companheiro e intérprete de Pedro, inicia
assim a redação do Evangelho”.[13]
Tertuliano (193-216 d.C.) em seu tratado Contra Márcion IV.5, fala que “o
Evangelho que Marcos publicou pode afirmar-se ser de Pedro de quem Marcos foi
intérprete”.[14]
Clemente de Alexandria em sua obra intitulada Hypotyposeis (cerca de 190-200 d.C.)
coloca o assunto da seguinte maneira
uma vez que
Pedro pregou a palavra publicamente em Roma e anunciado o evangelho pelo
Espírito, aos presentes, que eram muitos; estes suplicaram a Marcos, que
durante muito tempo o havia seguido e recordava o que (Pedro) havia ensinado,
para que registrasse suas palavras. Marcos fez o que lhe foi pedido, e
comunicou o evangelho aqueles que lhe haviam solicitado. Quando Pedro o soube,
não o impediu ativamente este empenho, nem o incentivou.[15]
Orígenes que viveu cerca de 210-250 d.C.,
também é citado por Eusébio (HE, VI, xiv.6,7), como segue
em segundo lugar, o [Evangelho] segundo Marcos, quem o
escreveu de acordo com as instruções de Pedro, e também a quem Pedro em sua
epístola geral lhe reconhece como a seu filho, dizendo “aquela que está na
Babilônia, também eleita, envia-lhes saudações, e também Marcos, meu filho”(1Pe
5:13).[16]
Alguns estudiosos rejeitam estes testemunhos
por considerá-los procedentes de fonte secundária. Werner G. Kümmel, por
exemplo, afirma que
com efeito,
Papias é a única testemunha independente, pois os demais relatos a respeito de
Marcos, como as ‘Memórias de Pedro’(Just., Dial.,
106,3) e das circunstâncias que teriam levado Marcos a escrever a pregação de
Pedro, dependem todos de Pápias, não tendo pois o menor valor como testemunha
independente.[17]
Kümmel para reforçar o seu argumento chega a
ponto de afirmar que Pápias inventou o relacionamento entre Marcos e o apóstolo
Pedro, para defender a origem do evangelho.[18] Contudo, podemos objetar esta tese de Kümmel, pois “não
parece que Pápias esteja defendendo a autoria de Marcos, ou o seu
relacionamento com Pedro, mas apenas a do evangelho em face da acusação de que
lhe faltava ‘ordem’”.[19]
Logo, a tese de Kümmel não possui
fundamentação. A preocupação central de Pápias era de defender o conteúdo, a
autoria atribuída a Marcos é somente uma inferência que ele faz, pois o que
estava sendo afirmado por Pápias parece ser o fato de que Marcos teria anotado
tudo com exatidão, que nada havia sido omitido, mas que lhe faltava certa
ordem.[20]
Quanto à confiabilidade do valor histórico de
Pápias, podemos concluir positivamente. Os Pais da Igreja cometeram muitos
erros, e entre eles existem discordâncias acerca de vários temas da fé cristã.
Contudo, devemos agir com sobriedade, e não negar a importância histórica do testemunho
que os Pais da Igreja nos oferecem. Precisamos avaliar as suas afirmações e
colocá-las ao crivo das Escrituras caso forem doutrinárias. A questão discutida
aqui não é doutrinária, e sim o valor
histórico do testemunho destes homens, e em especial de Pápias. Analisemos
então com senso crítico o valor histórico, a partir de quatro considerações que
pesam a favor da confiabilidade da declaração feita por Pápias.
Primeiro, devemos considerar a idade antiga do
testemunho. Pápias nasceu próximo ao ano 70 d.C., isso quer dizer que por volta
do ano 100 d.C., Marcos já era considerado como seu autor, uns 30 anos depois
de escrever. Adolf Pohl sugere que “uma lenda não poderia surgir em tão pouco
tempo. O surgimento de um livro como este no seio da igreja era um
acontecimento vivo, mal passada metade da vida de uma pessoa.”[21]
A segunda consideração que precisamos analisar
se refere à ausência do título. A tendência de atribuir evangelhos, ensinos,
ditos, etc., aos apóstolos é comprovada nos séculos II e III. É de se
questionar, por que alguém aparentemente inexpressivo no seio da Igreja Cristã
não colocou o título do seu livro como “Evangelho de Pedro”? Podemos responder
esta pergunta da seguinte forma: simplesmente porque a sua autoria já era um
assunto de comum acordo, e atribui-lo a um outro autor seria uma inverdade.
Uma terceira consideração se refere ao
propósito da indicação autoral feita por Pápias. Pápias declara claramente que
Marcos foi o autor do Evangelho. Ele não
estava preocupado em defender a autoria, e sim o conteúdo do Evangelho. É
inquietante pensar que para autenticar este Evangelho não seria um argumento
superior afirmar que o próprio apóstolo Pedro era o escritor do Evangelho, em
vez de Marcos? Pohl explica que “parece que os fatos históricos se impuseram
aos desejos e tendências. Por isso a consciência histórica não se livra tão
facilmente da observação de Pápias.”[22]
Uma última consideração é a respeito da
uniformidade de testemunhos. Mesmo que Pápias fosse o único que tivesse
afirmado que Marcos é o autor deste Evangelho, teríamos ainda a favor desta
tese o fato de que nenhuma voz dissidente durante o período da Patrística se
levantou, para apontar outro autor.[23] Então, “isso é surpreendente, pois a tendência na igreja
primitiva era associar apóstolos à redação dos livros do Novo Testamento.”[24]
Hendriksen de forma muito didática organiza seu
argumento a partir dos pontos geográficos, demonstrando como a tradição afirmou
a uma só voz a autoria do segundo Evangelho como pertencendo a Marcos. Ele
coloca assim
a evidência se
estende através de vários séculos, desde Eusébio até Pápias. Vem de todas as
regiões. Da Ásia, África e Europa; ou seja, desde o leste (Pápias de
Hierápolis, Eusébio de Cesaréia); do sul (Clemente de Alexandria, Tertuliano de
Cártago); e do oeste (Justino, o Mártir e o autor do Fragmento de Muratori de
Roma). Às vezes, há duas regiões representadas por uma só testemunha: o leste e
oeste (Irineu da Ásia Menor, Roma e Lião); o sul e o leste (Orígenes de
Alexandria e Cesaréia). Ortodoxo e heterodoxo, textos gregos antigos e versões
remotas acrescentam seu peso a mesma conclusão.[25]
Adolf Pohl resume bem ao afirmar que “este é o
cerne da tradição: sem questionamento de amigos e inimigos ficaram pelos
séculos estes três fatos: a autoria de João Marcos, sua ligação com Pedro e a
ligação do Evangelho com Roma.”[26]
2. Evidência Interna
Por evidência interna são aquelas evidências
que podem ser encontradas dentro do próprio livro, e que indicam a sua autoria.
Esta classe de evidência exige que voltemos nossos olhos para o texto,
sobretudo, ao texto grego. Precisamos ler e reler o livro várias vezes, e ainda
se possível compará-lo com os outros evangelhos.[27] Somente a partir daí poderemos chegar a algumas
conclusões, analisando a possibilidade do autor ter deixado indícios de si
mesmo impressos no texto.
É fato que o livro não traz consigo um título
original indicando a sua autoria, nem ao menos há uma menção objetiva do autor
dentro do Evangelho. Contudo, podemos nos perguntar, se o autor não deixou
impresso no texto o que poderíamos identificar como sendo as suas “impressões
digitais”?
O autor deste Evangelho, de fato deixou suas
marca pessoal, demonstrando que ele possuía um estilo literário próprio. Este
estilo pessoal, não é contrário à doutrina da inspiração orgânica-verbal, mas é
uma expressão dela; pois, como bem disse Stott se referindo a inspiração dos
escritores do NT, “o Espírito Santo primeiro preparou, e em seguida usou sua
individualidade de formação, experiência, temperamento e personalidade, a fim
de transmitir por meio de cada um alguma verdade distintiva e apropriada”.[28] Para que o assunto possua uma estrutura mais clara estarei
expondo as características desse estilo literário.
2.1. Características de Linguagem
Este Evangelho é o que possuí mais expressões
aramaicas. Embora seja um “Evangelho aos gentios”, conforme veremos no tópico
sobre “destinatário”, esta obra se caracteriza pelo uso de várias expressões
aramaicas, e algumas delas só ocorrem neste livro. Marcos foi discípulo de
Pedro (1 Pe 5:13), certamente que Pedro falava aramaico, e algumas dessas
expressões são demasiadamente próprias em seu uso, para que Marcos as julgasse
traduzíveis, ou adaptáveis à nomenclatura helênica daquela época, como por
exemplo “Abiatar” (2:36), “Iduméia” (3:8), “Boanerges” (3:17), “Talitá cumi”
(5:41), “Corban” (7:11), “siro-fenícia” (7:26), “Efatá” (7:34), “Dalmanuta”
(8:10), “Bartimeu” e “Timeu” (10:46), “Abbá” (14:36).[29]
Este Evangelho é rico em latinismos. Esta
evidência confirma e em muito a tradição de que Marcos escreveu seu Evangelho
em Roma, e para os cristãos romanos. Encontramos um número expressivo de
latinismos, palavras como centurio (15:39), quadrans (12:42), flagellare
(15:15), speculator (6:27), census (12:14), sextarius (7:4), praetorium
(15:15), legion (5:9).
Este Evangelho é conhecido por possuir um grego
“torto”. O estudioso do NT Dr. Robertson identifica o grego de Marcos como
sendo “um modo mui distintivo do vernáculo Koiné, como “torto” (monophthalmon, 9:27), como seria de se
esperar tanto em Pedro como em Marcos”.[30] Isto significa que embora o autor escrevesse em grego, ele
pensava como um judeu. Adolf Pohl afirma que “ele deve ter sido um
grego-palestino: falava e escrevia em grego, mas tinha suas raízes na Palestina
e no idioma aramaico.”[31] Isso explica o motivo do seu grego ser menos elaborado,
com a construção de orações simples.[32] Mas a sua simplicidade lingüística não deve “levar o
intérprete a deduzir simplicidade nos padrões de pensamentos”.[33]
Além destas características na linguagem do
Evangelho de Marcos soma-se o conhecimento de nomes aramaicos, latinos e gregos
de personagens secundários, que somente são citados por ele, por exemplo: Levi
e Alfeu (2:14), Boanerges (3:17), Jairo (5:22), Batimeu (10:46), Simão (14:3),
Salomé (15:40; 16:1), Alexandre e Rufo (15:21).[34] Isto demonstra um conhecimento mais do que particular dos
acontecimentos, demonstra também um conhecimento dos personagens que
participaram dos fatos.
Essas “impressões digitais” constadas, ainda
não nos revelam o seu autor, pelo menos não de forma objetiva e direta. Mas
essas características indicam que o autor era alguém que possuía uma excelente
noção dos acontecimentos por ele narrado, e que em muitos casos ele era de
fato, uma testemunha ocular. A sua
capacidade de resumo, e riqueza em detalhes, e ainda a unidade temática do
livro, bem como o seu estilo redacional demonstram que ele sabia o que queria
escrever.