Desde o dia de
Pentecostes, registrado em Atos 2, Jerusalém mostrava-se agitada por uma atividade religiosa sem precedentes.
Quanto mais os agora ousados apóstolos pregavam as boas novas de Cristo, tanto mais o povo ia se convertendo.
Tudo estava mudando,
até mesmo as tradições havia muito
existentes. Judeus moradores de Jerusalém, assim como peregrinos das redondezas
em visita à cidade, aceitavam Cristo aos milhares. Os líderes religiosos empedernidos sentiam-se exasperados com o que testemunhavam.
Aquilo era demais! Como resultado, segundo Atos 5:18, “prenderam os apóstolos
e os recolheram à prisão pública”.
Aqueles apóstolos
cheios do Espírito
estavam dando nos nervos dos líderes
da religião dominante. Não devemos olhar essas cenas por meio de lentes
demasiado cristãs. É melhor vê-las
da perspectiva dos cidadãos
de Jerusalém.
Aquele foi um
período perturbador para o Sinédrio. Sua tentativa
de silenciar os seguidores de Jesus crucificando o seu Mestre havia tido efeito
contrário ao desejado. Portanto,
encarcerar os fanáticos religiosos pareceu consistir na melhor estratégia para evitar que fizessem novos prosélitos
judeus. Nem isso, porém, adiantou.
Algo miraculoso
aconteceu também para piorar as
coisas. “Mas, de noite, um anjo do Senhor abriu as portas do cárcere e, conduzindo-os para fora, lhes disse: Ide
e, apresentando-vos no templo, dizei ao povo todas as palavras desta Vida. Tendo
ouvido isto, logo ao romper do dia,
entraram no templo e ensinavam” (At 5:19-21).
O tiro saiu
realmente pela culatra! Os líderes religiosos achavam que tinham resolvido o
caso dos rebeldes, quando, na verdade, apenas os motivaram a voltar à sua pregação mais ousados do que
nunca! Foi algo similar ao acontecimento que se seguiu à cena do Gólgota. Os
líderes religiosos tinham certeza
de que crucificar Cristo terminaria tudo. Não podiam
estar mais errados.
O Cristianismo
desabrochou depois da ressurreição dele. Agora, inflamados com o poder do
Espírito, os apóstolos estavam
incendiando Jerusalém com a sua pregação. Seu zelo era contagioso, e sua mensagem,
convincente. Não demorou muito para que as autoridades religiosas se vissem reduzidas a uma minoria que diminuía cada vez mais. Isso as
levou a convocar uma reunião de
emergência para decidir o que fariam
a seguir.
Chegando, porém, o sumo sacerdote
e os que com ele estavam, convocaram o Sinédrio e todo o
senado dos filhos de Israel e mandaram buscá-los no cárcere. Mas os guardas,
indo, não os acharam no cárcere; e, tendo voltado, relataram, dizendo: Achamos o cárcere fechado com toda a segurança e
as
sentinelas nos seus postos junto
às
portas; mas, abrindo-as, a ninguém encontramos dentro.
Atos
5:21-23
Isso não foi esplêndido? O anjo do Senhor abriu a prisão,
libertou os apóstolos
e depois trancou
tudo outra vez. Ao chegarem, encontraram os guardas dormindo, as portas
fechadas e nenhum prisioneiro.
E bem provável que Saulo estivesse no grupo
que ouviu esse relato perturbador.
Teria sido
apresentado a todo o Sinédrio, inclusive aos agregados, tais como advogados iniciantes, conselheiros e talvez até servos. Não querendo perder
nada, Saulo absorveu cada detalhe à medida que se desenrolavam os acontecimentos. As coisas estavam fugindo ao
controle.
Compreenda também a
crescente frustração que tomou conta das autoridades religiosas. Lemos: “Quando o capitão do templo e os principais sacerdotes ouviram
estas informações, ficaram
perplexos a respeito deles e do que viria a ser isto” (At 5:24).
Não é interessante esse texto? Em termos atuais, “ficaram perplexos” seria: — O QUE ESTÃO QUERENDO
DIZER? COMO É QUE NÃO ENCONTRARAM OS HOMENS? — Aqueles juízes
preconceituosos
ficaram fora de si tentando descobrir o que acontecera. Para piorar as coisas,
outro mensageiro apareceu correndo
com uma notícia ainda mais surpreendente: Eis que os homens que recolhestes no cárcere, estão no templo
ensinando o povo. Nisto, indo o capitão e os guardas, os trouxeram sem violência,
porque temiam ser apedrejados pelo povo.
Atos 5:25,26
Não perca de vista a importância do detalhe
acrescentado no final. Esses líderes piedosos agora temiam por suas vidas, pois sentiram a maré se voltando contra
eles. Mais e mais pessoas nas ruas estavam dizendo: “Não toquem nesses homens. Eles
estão declarando coisas que precisamos ouvir... coisas que vocês nunca nos disseram.” A confiança cega que o
povo de Jerusalém colocara em seus líderes
estava agora desaparecendo, à medida que seus olhos iam sendo abertos para a
verdade do Evangelho. Em vista de as
massas estarem acreditando neles, o Sinédrio procedeu com cautela: “Trouxeram-nos, apresentando-os ao Sinédrio” (v. 27).
Observe agora
cuidadosamente: “E o sumo sacerdote interrogou-os, dizendo: Expressamente vos ordenamos que não ensinásseis nesse
nome; contudo, enchestes Jerusalém de vossa doutrina; e quereis lançar sobre nós
o sangue desse homem” (At 5:27,28).
Em outras
palavras: “Vocês estão dizendo ao povo que nós somos a razão de aquele falso Messias ser crucificado. Queremos que
saibam que foram os romanos que fizeram isso. Nós apenas aceitamos o plano. Mas vocês
nos fazem parecer perversos.” Note
como os apóstolos, especialmente Pedro,
responderam: Então, Pedro e os demais apóstolos
afirmaram: Antes, importa
obedecer a Deus do
que aos homens. O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, a quem vós matastes,
pendurando-o num madeiro. Deus,
porém, com a sua destra, o exaltou a Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão de
pecados. Ora, nós somos testemunhas destes fatos, e bem assim o Espírito Santo, que Deus outorgou aos que lhe obedecem.
Atos
5:29-32
Saulo ouviu esse
discurso. Já pensou nisso? Enquanto ficava nas sombras ouvindo Pedro falar, os cabelos em sua nuca se eriçaram. Aquele
jovem e piedoso fariseu, hebreu dos hebreus, ouviu irado enquanto aquele pescador ignorante, chamado Pedro, falava
do falecido Jesus, que tinha afirmado ser Deus. Era quase mais do que
podia suportar. As emoções de Saulo fervilhavam em seu íntimo, enquanto ele
formulava planos, pensando: “Se pudesse pôr as mãos nele, eu o mataria como a todo o resto”. Ele não
podia imaginar que aquele “pescador ignorante” viria a ser seu
colaborador no trabalho de estabelecer igrejas
cristãs em todo o mundo conhecido. Antes que Saulo pudesse organizar um ataque sobre aquele homem e seus companheiros, Deus interveio em outra surpreendente reviravolta de eventos
quando o conselheiro de Saulo levantou-se no meio da reunião.
UM ALIADO INESPERADO
Eles, porém, ouvindo,
se enfureceram e queriam matá-los. Mas, levantando-se no Sinédrio um fariseu, chamado Gamaliel, mestre da lei,
acatado por todo o povo, mandou retirar os homens, por um pouco.
Atos 5:33,34
Espere um pouco.
Quem é Gamaliel? Saulo estudou com esse homem durante os anos de sua instrução em Jerusalém; ele testemunhou
que foi “instruído aos pés de Gamaliel” (At 22:3). Sentou- se aos pés de Gamaliel durante a sua
educação formal na lei judaica. Ficou olhando quase sem respirar, enquanto observava seu orientador espiritual em ação.
Seria o mesmo que um estudante de direito,
depois de formado, visitasse um tribunal para observar um professor a quem
admira praticar a lei. Que grande
momento para Saulo! Ele talvez esperasse palavras fortes de condenação contra Pedro. Mas aconteceu
justamente o oposto.
E lhes disse: Israelitas, atentai bem no que ides fazer a estes homens.
Porque, antes destes dias, se levantou Teudas, insinuando ser ele alguma coisa, ao qual se
agregaram cerca de quatrocentos homens;
mas ele foi morto, e todos quantos lhe prestavam obediência se dispersaram e
deram em nada. Depois desse,
levantou-se Judas,
o galileu, nos dias do recenseamento, e levou muitos
consigo; também este pereceu, e todos quantos lhe obedeciam
foram dispersos. Agora, vos digo:
dai de mão a estes homens, deixai-os; porque, se este conselho ou esta obra vem de homens, perecerá.
Atos
5:35-38
William Barclay
chama Gamaliel de “aliado inesperado”. Em meio à irritação geral e pensamentos irracionais, esse professor
sábio e experiente, levantou-se com toda calma e advertiu: “Tomem cuidado. Não se apressem em
julgar.” Em suas próprias palavras: “...dai de mão a estes homens, deixai-os; porque, se este
conselho ou esta obra vem de homens, perecerá; mas, se é de Deus, não podereis destruí-los, para que
não sejais, porventura, achados lutando contra Deus” (At 5:38,39).
O jovem fariseu
balançou a cabeça incrédulo: “Este homem deveria ser um
porta-voz do judaísmo. Ele me ensinou
grande parte do que sei sobre o judaísmo e a lei. Ele me instruiu sobre como fazer exatamente o que faço hoje em dia. Mestre Gamaliel, o senhor perdeu a cabeça?!”
E claro que Saulo não tinha meios para saber
que aquele raciocínio calmamente expresso iria
preservá-lo, mais tarde,
quando viesse a carregar a tocha de Cristo. Então
se lembraria de que os que lutassem contra ele estariam, na
verdade, lutando contra Deus. Mas, naquele momento, não tinha a menor noção disso. Tudo o que via era uma mancha vermelha. Vermelha como sangue. Não conseguia acreditar que o Sinédrio
concordasse com um conselho assim tão calmo
e considerasse usar de
brandura com aqueles infiéis.
Mas
foi exatamente isso que fizeram.
Se me permitir um instante de digressão
aqui, penso que Pedro permaneceu vivo então e nos anos que se seguiram por causa da intervenção sábia de Gamaliel.
Acredito que o “aliado inesperado” salvou sua vida. Saulo e os outros teriam apedrejado o grupo inteiro.
Mas Deus graciosamente interferiu, usando as
palavras de um professor sábio para preservar a vida daqueles que
posteriormente iriam desempenhar papéis trágicos na formação da igreja cristã. Lembre-se disso
quando sentir que as circunstâncias de sua vida são desespe-radoras. Não
importa o que tenha de enfrentar, Deus continua no controle, silenciosa e soberanamente operando
todas as coisas
conforme seu plano perfeito.
Ele tem o seu Gamaliel esperando nos bastidores. No momento exato, quando suas palavras forem produzir o
maior impacto, eles sairão das sombras.
Os líderes
religiosos aceitaram sabiamente o conselho de Gamaliel. As Escrituras dizem
que: “Chamando os apóstolos,
açoitaram-nos e, ordenando-lhes que não falassem em o nome de Jesus, os soltaram” (v. 40).
Espere um minuto!
Isso não é justo. Que direito tinham de açoitar os homens se estavam planejando soltá-los? Foi o jeito de o
Sinédrio dar seu doloroso recado: “Quando a pele de suas costas for arrancada, talvez não esqueçam que estamos falando sério. Vão embora!”
Como você
teria reagido numa situação assim? Quando o seu grupo
estivesse em fila e despido para as chicotadas, você teria se escondido no corredor dos fundos? Teria procurado um meio
de sair pela porta, quando
ninguém estivesse olhando? O açoite era uma tortura terrivelmente dolorosa e humilhante. Quem não tentaria escapar?
Nosso respeito
por esses homens se intensifica nesse ponto. Veja como eles reagiram: “E eles se retiraram do Sinédrio regozijando-se
por terem sido considerados dignos de sofrer afrontas por esse
Nome. E todos os dias, no templo e
de casa em casa, não cessavam de ensinar e de pregar Jesus, o Cristo” (5:41,42).
Coragem notável! O sangue em suas feridas
mal havia secado quando voltaram a pregar Cristo para o povo. Embora nós os respeitemos, Saulo os odiava por
causa disso. Foi o que o motivou a tomar
medidas ainda mais agressivas contra eles, e o que mais tarde usou em sua
defesa perante Agripa: “E assim procedi em Jerusalém. Havendo
eu recebido autorização dos principais sacerdotes, encerrei muitos dos santos nas prisões; e contra estes dava o
meu voto, quando os matavam. Muitas vezes, os castiguei por todas as sinagogas, obrigando-os até a blasfemar. E, demasiadamente enfurecido contra eles, mesmo por cidades estranhas os perseguia” (At 26:10,11).
Preste atenção novamente. Não se trata de um intelectual manso e de
boas maneiras falando. Ele se tornara um
fariseu apaixonado e decidido - um homem com uma missão. Mais tarde, escreveria uma confissão similar a seu filho na fé,
Timóteo: “Sou grato para com aquele que me fortaleceu, Cristo Jesus, nosso Senhor, que me considerou fiel,
designando-me para o ministério, a mim, que,
noutro tempo, era blasfemo,
eperseguidor, e insolente. Mas obtive misericórdia, pois o fiz na ignorância, na incredulidade” (1 Tm 1:12,13, grifos do autor).
Que tal essa autobiografia de Saulo em duas frases?
Esse é o mesmo homem que escreveria sobre a
graça e a misericórdia de Deus. Esse é aquele
que viveria para ver o dia em que as palavras penetrantes de Pedro
tomariam conta de sua própria garganta,
tornando-se a força motriz de seu compromisso com Cristo. “Ninguém pode lutar
contra Deus”, pregaria ele aos seus
adversários. Mas antes de a graça de Cristo pegá-lo de jeito, ele se opunha
violentamente a tudo e a todos que se relacionassem ao Caminho. Não esqueça de
uma coisa: ele fez isso em nome de Deus. Essa é a
razão de não haver nada mais assustador, mais perverso, do que um terrorista religioso. Justifica todas as suas ações em nome de Deus.