quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

APRENDENDO COM RUTE

 

APRENDENDO COM RUTE

 

AS LÁGRIMAS

 

 

Preocupação com as coisas comuns (1:1)

Nos dias em que julgavam os juizes ...um homem.

 

Em um mundo dominado (se acreditarmos nos meios de comuni­cação) pela "crise" e pêlos "desafios", no qual cada pequeno aconteci­mento pode ser transformado em manchete, contanto que haja nela uma "história interessante" (e até mesmo em uma igreja, onde o incomum e espetacular costuma ser recebido por certas pessoas como mais autêntico que a monotonia e a rotina), é um alívio abrir o livro de Rute.

 

Já descrevemos a agradável simplicidade de seus assuntos: a vida do interior, suas alegrias e tristezas, suas "virtudes agradáveis" e, especialmente, sua concentração nos personagens à volta dos quais se tece a história.

 

Isto se destaca mais ainda pelo contraste com o livro dos Juizes, com o qual as palavras iniciais estabelecem uma ligação. O livro de Juizes termina com uma referência ao caos social e à miséria pessoal resultantes da falta de autoridade justa entre o povo: "Naqueles dias não havia rei em Israel: cada um fazia o que achava mais reto."

 

 O livro de Juizes foi pintado numa tela grande. Embora apareçam no livro personagens individuais, sempre surgem no contexto da guerra civil, das convulsões nacionais, dos assuntos internacionais.

 

Mas o livro de Rute, embora não fique totalmente esquecido do significado nacional, e até mesmo global, dos seus personagens, trata de um < homem, sua família e seu destino. Lembra-nos de que o Deus das nações também está interessado nas coisas comuns relacionadas a "um homem".

 

Nosso Senhor, que nos ensinou a orar ao "nosso Pai que está no céu" e a elevar nossos corações e mentes para a visão global da vinda do seu reino (pois seu é o reino e a glória para todo o sempre), também nos ensinou a orar pelo pão nosso de cada dia. Deus, que sabe quando um pardal cai ao chão e que nota quando oferecemos um copo de água fresca a quem precisa dele,2 também se interessa pelas coisas comuns. Como Helmut Thielicke o destaca:

 

 

Diga-me até que ponto você considera Deus sublime e eu lhe direi quão pouco ele significa para você. Este pode ser um axioma teo­lógico. O Deus sublime foi arrancado de minha vida particular... Se Deus não tem significado para as minúsculas peças do mosaico de minha vidinha particular e para as coisas que são do meu interesse, então ele não tem significado algum para mim.

 

O interesse de Deus no destino de um homem nos dias em que julgavam os juizes deveria nos lembrar que até mesmo as nossas coisas mais comuns são significantes para Deus e se encaixam no seu cuidado todo-poderoso.

 

ASAS DE REFÚGIO

 

Graça e gratidão

 

O segredo (2:1)

Tinha Noemi um parente de seu marido, senhor de muitos bens, da família de Elimeleque, o qual se chamava Boaz.

 

Enquanto a maior parte das histórias de detetives guarda seu segredo até a última página, o escritor de Rute nos revela um segredo bem no começo deste capítulo.

 

Ao fazê-lo, ele nos dá mais uma indicação do propósito geral deste livro e de sua preocupação em não nos deixar ignorantes a respeito dele. A esta altura da história, nem Noemi nem Rute sabiam que não muito longe de sua casa morava um homem de considerável riqueza e influência que era seu parente, ou melhor, parente do falecido marido de Noemi.

 

O dia da vida de Rute contido em Rute 2:1-22 é o dia em que ela vem a conhecer esse homem, Boaz. No final do dia, depois do trabalho, ela conta a Noemi o que aconteceu. Só então ela percebe o verdadeiro significado do seu encontro (2:20). Até então, Rute não havia notado que o encontro não fora acidental, mas parte do propósito de um Deus cheio de graça e cuidado.

 

Mas nós, os leitores, somos informados sobre Boaz neste primeiro versículo. Com esta informação, nosso contador de histórias está nos preparando pelo seguinte motivo: quando, mais tarde, Rute vem a conhecer Boaz de um modo que lhe parece puramente acidental, nós já estaremos informados. Por trás dos aparentes acasos dos encontros comuns do dia-a-dia, Deus expressa o seu cuidado e a sua determi­nação providencial, a sua graça da aliança.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

APRENDENDO COM RUTE

APRENDENDO COM RUTE  

A fé de Rute (Rute l:14b-18)

Órfã com um beijo se despediu de sua sogra, porém Rute se apegou a ela. Disse Noemi: Eis que tua cunhada voltou ao seu povo e aos seus deuses; também tu, volta após a tua cunhada. Disse, porém, Rute: Não me instes para que te deixe, e me obrigue a não seguir-te; porque aonde quer que fores, irei eu, e onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. Onde quer que morreres, morrerei eu, e aí serei sepultada; faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver, se outra cousa que não seja a morte me separar de ti. Vendo, pois, Noemi que de todo estava resolvida a ir com ela, deixou de insistir com ela.

Enquanto Órfã deu prova do seu amor na obediência ao desejo de Noemi de que partisse para se casar novamente, Rute demonstrou o seu amor tornando-se sua filha. 

Lemos que Rute se apegou a Noemi (versículo 14). Este verbo é a palavra que expressa um "apego" fiel e sincero em um relacionamento pessoal, como o do homem com a esposa no jardim do Éden. 

Também é usado em relação à sincera fidelidade que Deus espera do povo da aliança em resposta à sua iniciativa da graça salvadora. Rute, a moabita, ex-adoradora de Camos, está demonstrando uma qualidade de vida característica do povo de Javé.

Apesar de Noemi citar o exemplo de Órfã e da óbvia adequabilidade de que Rute permaneça com o "seu povo", e apesar de que, de acordo com a sabedoria humana, uma adoradora de Camos devesse obviamente permanecer onde os "seus deuses" eram adorados, Rute insiste em ficar com Noemi. 

O nosso autor apresenta aqui as palavras de Rute, sua clássica e bela afirmação de fidelidade, determinação e compromisso de amor. Rute quer compartilhar do futuro de Noemi: sua viagem, seu lar, sua fé. É a promessa de uma fidelidade sincera na vida e para toda a vida. Ou, por que não dizer, além da vida: os membros de uma família partilhavam do mesmo chão ao serem sepultados, pelo menos na Palestina primitiva; e supomos que isto também acontecia com o povo de Rute. Como diz Leon Morris, a firme determinação de Rute é que nada, nem mesmo a morte, vá separá-la de Noemi. 

E no centro desta expressão de amor e compro­misso para com Noemi (na viagem, no lar, na família, na vida e na morte) está o compromisso de adorar o Deus de Noemi. Embora, num certo sentido, seja verdade que Rute talvez pensasse que uma mu­dança para Belém poderia implicar a necessidade de reconhecer "o deus de Belém", num outro, a sua fé mostra-se explicitamente mais profunda. 

Rute está disposta a colocar nos seus lábios o nome do Deus da aliança de Noemi, Javé, o Senhor, numa determinada profissão de fé naquele que fundamenta o seu juramento. Faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver: esta expressão deveria incluir um gesto invocando a punição de Javé sobre ela, caso deixasse de cumprir o seu voto.

A fé de Noemi com certeza era tão eficaz, mesmo na adversidade, apontando para o governo soberano de Javé, que Rute, através do testemunho de Noemi, foi agora capaz de exercer a sua própria fé no Deus dela e de se considerar agora como parte do povo da aliança de Javé. Não teria sido precisamente a fé de Noemi, em meio às in­certezas, que mostrou a Rute o Senhor?

Com que frequência o Senhor usa as experiências do seu povo, especialmente em períodos de aflição e dificuldades, para atrair outros a si! Quando Moisés foi ao encontro de Jetro, seu sogro, ele contou "tudo o que o Senhor havia feito a Faraó e aos egípcios por amor de Israel, todo o trabalho que passaram no Egito, e como o Senhor os livrara." Jetro se regozijou pelo livramento cheio de graça de Deus: "Agora sei que o Senhor é maior que todos os deuses."

Da mesma forma, Paulo, preso sob a guarda romana, o que ele considerava como parte de sua "incumbência" para com Cristo, escreve aos leitores em Filipos: "Quero ainda, irmãos, cientificar-vos de que as cousas que me aconteceram têm antes contribuído para o progresso do evangelho." Por meio dos seus sofrimentos a igreja foi incitada a uma renovada devoção e Cristo foi pregado.

Aqui, nesta passagem, o Senhor está atraindo Rute à fé, certamente usando como testemunho persuasivo a experiência da graça de Noemi através da aflição. Um Deus que se revela no vale das sombras é digno de nossa confiança também nos dias de maior conforto.

 Noemi ou Mara? (1:19-22)

Então ambas se foram, até que chegaram a Belém; sucedeu que ao chegarem ali, toda a cidade se comoveu por causa delas, e as mulheres diziam: Não é esta Noemi? Porém ela lhes dizia: Não me chameis Noemi, chamai-me Mara; porque grande amargura me tem dado o Todo-poderoso. Ditosa eu parti, porém o Senhor me fez voltar pobre; por que, pois, me chamareis Noemi, visto que o Senhor se manifestou contra mim, e o Todo-poderoso me tem afligido? Assim voltou Noemi da terra de Moabe, com Rute, sua nora, a moabita; e chegaram a Belém no princípio da sega das cevadas.

Quando Noemi viu que Rute estava "resolvida", firmemente de­terminada por uma decisão inabalável (1:18), ela concordou, e as duas viúvas seguiram juntas para Belém. Quando chegaram, os homens, ao que parece, estavam fazendo a colheita da cevada, no começo da sega, isto é, em abril. 

Mas as mulheres (Knox as restringe a "todas as fofoqueiras"!) começaram a fazer perguntas. Noemi estivera fora durante muitos anos. Ela partira com marido e dois filhos, e voltava agora viúva com uma nora viúva. Talvez sua aparência falasse da amargura que tinham experimentado. Quando lhe perguntaram: Não é esta Noemi?, o jogo de palavras com o significado do seu nome é comovente: Não me chameis Noemi (que significa "alegre"); antes, chamai-me Mara (que significa "amargura"). Conforme percebemos em 1:13, ela crê que as amargas experiências que enfrentou vieram da mão de Deus: "porque grande amargura me tem dado o Toâo-Poderoso."

 O Todo-poderoso

O título divino traduz a palavra hebraica Shadai, geralmente usada no Pentateuco e particularmente em Génesis. Discordam os autores sobre o significado de sua raiz, sugerindo alguns que mais provavel­mente a etimologia relacione "Shadai" com "montanha", no sentido qualitativo de possuir durabilidade, solidez e veracidade.

 Contudo, se verificarmos o seu uso em Génesis, descobriremos três referências que podem esclarecer o seu significado, levando-nos ao pensamento de Noemi ao usá-lo.

Primeiro, em Génesis 17:1, descobrimos que Deus fez a um Abraão de noventa e nove anos de idade a promessa de gerar filhos, e se revela como "Deus Todo-poderoso". Aqui ele é o Deus que pode transfor­mar a impotência do homem em bênção, para o bem do próprio homem e para a sua glória. Segundo, em Génesis 43:14, o velho Jacó, em sua perplexidade, concorda relutantemente com que os seus angustiados filhos retornem ao Egito, levando o irmão mais moço para o (até então) ainda não identificado José: "Deus Todo-poderoso vos dê misericórdia perante o homem." "Shadai" aqui fala da espe­rança da proteção de Deus para um período de incertezas. 

E, terceiro, em Génesis 49:25, a profecia de Jacó sobre os seus filhos fala da futura "fertilidade" de José apesar de todo o "embaraço", e o atribui ao "Todo-poderoso, o qual te abençoará com bênçãos dos altos céus, com bênçãos das profundezas, com bênçãos dos seios e da madre." Depois de treze anos de sofrimento e isolamento na prisão, José é elevado a primeiro ministro do Egito! Esse tipo de bênção é característico de Shadai.

E é com referência a esse aspecto do caráter de Javé descrito por "Shadai" ("o Deus que é melhor quando o homem está na pior", como J. A. Motyer uma vez expressou) que Noemi apresenta a estrutura de sua fé naquele em quem ela deposita o seu sofrimento. É como se ela dissesse: "Vocês podem ver a amargura que tenho experimentado: a fome, a perda de entes queridos, as dúvidas, as separações, o aparente desespero; mas eu conheço Deus como Shadai, e posso deixar as explicações, e até mesmo a responsabilidade, desta amargura com ele."

Será que ela não estava conseguindo enfrentar a realidade? Será que Noemi estava errada em pensar assim? Será que ela estava acusando Deus do mal que sofria, usando aquele tipo de astuta explicação mais apropriada aos inúteis consoladores de Jó ao invés de observações que eram fruto de uma fé amadurecida?

 Não nos parece assim. Antes, parece que é exatamente a chave de como uma pessoa de fé aprende a enfrentar a dor e a incerteza das muitas tribulações da vida. Em um mundo, no qual, da perspectiva humana, as palavras do Pregador parecem sobremodo verdadeiras ("Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento"), suas outras palavras podem fornecer o contexto completo, a perspectiva mais ampla dentro da qual a "vaidade" pode ser enfrentada: "não sabes as obras de Deus, que faz todas as cou­sas". 

É a pessoa que conhece o seu Deus como Shadai que pode perceber a outra história: que até mesmo a aparente falta de signifi­cado do sofrimento terreno faz parte de um padrão da providência, e pode ser enfrentada quando colocada nas mãos de Deus. E não apenas Shadai, pois o Deus que se revelou nessa característica é o Deus que também declarou o seu nome ao seu povo: Javé, um nome que aponta para o seu amor expresso na aliança. E Noemi sabe que o Shadai com o qual ela pode deixar sua amargura é o Javé que a trouxe para casa.

Conta-se a história de um pregador que usava como ilustração os fios emaranhados do avesso de uma tapeçaria, destacando que grande parte da experiência desta vida "debaixo do sol", neste mundo decaído e afligido pelo pecado, em todos os seus diferentes caminhos, geralmente nos parece ser uma confusão de cores sem relação alguma, fios soltos e nós indesembaraçaveis. 

Apenas quando o outro lado da tapeçaria se torna visível é que esses mesmos fios nos apresentam o que foi bordado: "Deus é Amor". Talvez não vejamos o outro lado, que nós chamamos de "outra história", que está sendo escrito ao longo e ao redor da história humana a qual nós lemos às vezes de maneira tão dolorosa. Mas a fé é a garantia divina de que esse outro lado existe, e de que, no seu amor, até mesmo o sofrimento tem um significado.

Este é um tema exemplificado em outras passagens das Escrituras. Quando o salmista ficou desesperado por causa da prosperidade dos perversos e da aparente futilidade de uma vida honesta, de modo que até a sua própria fé parecia estar sendo tragada pela calamidade e pela dúvida, ele achou que era "mui pesada tarefa" tentar compreendê-lo. "Até que entrei no santuário de Deus": então o homem perverso e ele mesmo foram vistos a uma nova luz. Ele pôde, apesar da contínua incerteza, exclamar: "Todavia, estou sempre contigo, quanto a mim, bom é estar junto a Deus; no Senhor Deus ponho o meu refúgio."

 Davi também, no Salmo 30, chegou a "clamar" a Deus pedindo ajuda. Ele experimentou o que chama de "ira" de Deus. Ele chora e suplica a Deus, e descobre que até mesmo a profunda tristeza pode produzir alegria. O visitante noturno que chega vestido de "choro" é transfor­mado pela luz do dia em exclamações de alegria.42

Nosso Senhor Jesus, também, ajudou os discípulos a entenderem suas perplexidades e dúvidas a uma nova luz e de uma perspectiva diferente. Quando, falando do sofrimento de um homem que nascera cego, eles perguntaram a Jesus "Por quê?" Eles não foram informados da causa ativa do sofrimento, mas apenas da causa final: "para que se manifestem nele as obras de Deus".43

Mas é na própria pessoa de Cristo que a plena revelação desta verdade se torna clara. O Novo Testamento o apresenta como o servo sofredor de Deus, como o Cordeiro de Deus sobre o qual foram colocados os pecados e as dores do mundo. Em Cristo, e em particular na vida de Cristo derramada na morte da cruz, o próprio Deus entrou e compartilhou das profundezas do sofrimento e do pecado deste mundo. 

Ele assumiu sobre os seus ombros a responsabilidade de resolver este assunto. Na horrível ruptura da comunhão entre o Pai e o Filho, focalizada no grito de abandono, Deus demonstrou o seu desejo de que a graça preciosa fosse conhecida em cada separação e sofrimento humano; ele ouve cada oração com o grito: "Meu Deus, por quê?" Além disto, com espantosa condescendência, ele nos convida a lançar sobre ele nosso pecado e nosso sofrimento, e até mesmo, poderíamos dizer, a desabafar sobre ele nossa ira, pois ele a pode suportar. 

Não é isto que acontece em alguns daqueles difíceis salmos "imprecatórios", quando o autor dá vasão à sua ira?

Frank Lake cita Robert Leighton, arcebispo de Glasgow no século XVII, que escreveu a uma mulher muito deprimida: "Eu a convido a lançar a sua raiva 110 seio de Deus." Então Lake prossegue, dizendo o seguinte em um parágrafo muito comovente:

O propósito da cruz de Cristo é atrair sobre ele a justa ira dos inocentes aflitos, que não podem se defender nem se vingar ade­quadamente para dar um fim à injustiça do momento e que tendem, portanto, a adiar e inevitavelmente transferir a reação, de modo que outras pessoas, relativa ou totalmente inocentes, vêm a sofrer. Cristo foi crucificado para que agora a nossa ira possa se esgotar, obedientemente e na fé, ferindo aquele que foi providenciado, o Cordeiro de Deus. Pecado passa a ser, então, "não crer em Jesus", não confiar nele para assumi-la e, ao assumi-la, acabar com ela.44

Precisamos aprender, na vida pessoal e pastoral, a aplicar o evangelho da graça de Deus em Cristo às mais profundas neces­sidades emocionais. Nossos sentimentos também estão dentro do escopo da providência de Deus.

Neste primeiro capítulo de Rute, Noemi compartilhou conosco a sua fé em Deus. É uma fé cujo brilho contrasta com as trevas dos seus sofrimentos. Ela viu a mão do Senhor na restauração da bênção de Belém; reconheceu a mão divina levantando-se contra ela na amarga experiência da morte; buscou o seu cuidado e proteção para Órfã e Rute; deu testemunho do Todo-poderoso na dor, quando de sua volta às antigas amizades. Esta é uma fé e uma confiança em Javé que reluz maravilhosamente na tela de fundo obscura e cheia de dúvidas dos dias em que os juizes julgavam. É a fé em Javé que levou Rute a confiar nele: a fé na qual se baseiam os subsequentes capítulos de nossa história.

Rute e Boaz assumem os papéis principais no restante do livro. Noemi, porém, volta no capítulo 2 de Rute como a intérprete à luz da providência de Deus; e, em Rute 3 e 4, ela é o agente de bênçãos divinas providenciais aos outros.

 

 

 

 

APRENDENDO COM NOEMI

 APRENDENDO COM NOEMI  

A morte de Abimeleque (1:3-5)

Morreu Elimeleque... Morreram também ambos, Malom e Quiliom, ficando assim a mulher desamparada de seus dois filhos e de seu marido.

A morte, num certo sentido, é um dos acontecimentos mais natu­rais da vida, mas, num outro, é o menos natural. Todos os homens são mortais; o tempo de permanência do homem aqui na terra é limi­tado. 

A morte inexoravelmente lembra o homem de sua fragilidade e limitação; limitação essa (o salmista nos diz) da qual o Senhor não fica esquecido, e que faz par te do significado da compaixão que sente para com o seu povo: "Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece dos que o temem. Pois ele conhece a nossa estrutura, e sabe que somos pó." 

Assim como toda a "natureza", a morte faz parte do homem desde o princípio. E certas casas funerárias modernas parecem recusar-se a crer que ela seja real.

Que significado, ficamos imaginando, o crente em Javé dava à morte quando Noemi ficou desamparada de seus dois filhos e de seu marido? 

Eles não tinham consciência da transformação do significado da morte trazida pelo Novo Testamento. Eles tinham muito menos fundamento do que nós para crer na vida após a morte. 

Não poderiam ter entendido a plenitude do significado das palavras de Paulo sobre a morte, que "perdeu o seu aguilhão", ou da sua descrição da morte como um simples "adormecer".

 Mas não devemos esquecer a confiança de Davi em que estaria com o seu filho morto, nem o pensamento positivo dos Salmos 49 e 73. 

Mesmo para um homem de fé do Antigo Testamento, morrer era "dormir com os seus pais", ou "ser reunido ao seu povo". E o desespero expresso em passagens tais como o Salmo 88 parte daquele que se julga alienado da com­paixão de Deus, morrendo sob a sua ira, e não de um crente ple­namente confiante na graça de Deus.

Mas é a ressurreição de Jesus Cristo que dá forma àquilo que para o cristão agora é uma certeza: para o crente a morte proporciona comunhão infinita com o Senhor. Para o cristão, morrer é "zarpar rumo a outra terra".

 Nossos corpos são preparados para uma vida espiritual mais completa, preparados para a vida no céu, com seus correlativos celestiais mais ricos do que os corpos físicos que são apro­priados para este mundo de espaço e tempo. 

A esperança cristã aguarda "aquela grande multidão que ninguém pode enumerar", cujas roupas foram alvejadas "no sangue do Cordeiro", que ficarão em pé diante do trono de Deus e o servirão "de dia e de noite no seu santuário".

Algumas partes do Antigo Testamento dão indicações destas afir­mações de fé. Isaías, numa seção que poderia ser considerada como a base da fé no destino pessoal, como também da sorte da nação, fala do tempo quando o Senhor "tragará a morte para sempre e assim enxugará o Senhor Deus as lágrimas de todos os rostos." 

Então ele afirma que "os vossos mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão; despertai e exultai, os que habitais no pó." E nas visões apocalípticas de Daniel, ele se estende pela fé em busca daquilo que talvez apenas perceba indistintamente: "Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para a vergonha e horror eterno."

Mas, de um modo geral, a morte no Antigo Testamento é um estado ambíguo e escuro. De um lado, os mortos são às vezes considerados como aqueles que foram separados da esfera da influência de Javé. A morte para eles significa o fim de um relacionamento consciente com Deus; já não se ouvem mais louvores a Javé. 

A morte é o rei dos terrores. O submundo tenebroso do Seol, o lugar dos mortos, é um local profanado que enfatiza o horror da morte. O crente em Javé não deve tentar alcançar aqueles que morreram, nem deve, como os demais cananeus, ocupar-se em rituais da morte, como cortar o cabelo ou ferir sua carne como um reconhecimento do poder da morte.

 O povo de Moabe, entre o qual Noemi habitava, possivelmente tinha atitudes para com a morte que eram intoleráveis para o crente em Javé (indicadas, talvez, pelo modo como Amos teve de denunciá-lo porque "queimou os ossos do rei de Edom, até os reduzir a cal").

Por outro lado, também encontramos no Antigo Testamento uma forte fé em Javé como Senhor, e o Senhor da vida. Nenhum outro soberano pode reinar no reino da morte. Assim, neste vácuo, a fé em Javé cria indícios de esperança. 

O salmista, quando se encontra à beira da morte, clama a Javé para que se lembre dele; e, em outra passagem, o poeta expressa a certeza de que Deus vai recebê-lo através da morte numa outra vida. Ou, então, mesmo que venha a fazer a sua cama no Seol, "lá estás também". O Senhor não vai abandoná-lo. 

Há um sentido no qual, no momento da morte, Javé vai "arrebatar" o crente para que fique em comunhão com ele. O próprio Deus está presente junto ao crente na vida e na morte, e não vai abandoná-lo no reino de Seol.

Quanto desta fé crescente Noemi partilhava nós não sabemos. Talvez ela tivesse vislumbres dessa verdade que nos foi totalmente revelada no Novo Testamento: para aquele que se aproxima de Deus pela fé, a morte, num certo sentido, já ficou para trás. Os crentes cristãos são "batizados na morte de Cristo" e, embora a sua morte física ainda tenha de acontecer porque a glória completa ainda não foi revelada, sua comunhão contínua com o Senhor é coisa segura.

Mas seja quanto for que Noemi tenha captado sobre o significado da morte para o crente em Javé, existem dois aspectos de suas próprias circunstâncias que são evidentes. Primeiro, seu marido e filhos haviam morrido prematuramente. 

Como podemos nos identifi­car bem com a tristeza do Antigo Testamento, quando enfrentamos aquilo que os que ficam só podem classificar de morte prematura! Abraão morreu em idade avançada, um homem velho e cheio de anos. Numa vida assim há realização, como na de Jó, que viu seus filhos, netos e até mesmo bisnetos. 

Mas a morte de uma pessoa jovem tem um tom de tragédia: "Em pleno vigor de meus dias hei de entrar nas portas do além; roubado estou do resto dos meus anos." Hagar, a mãe, lamenta a morte iminente de seu filho: "Assim não verei morrer o menino"; e Davi sofre com a morte do seu filho.

 Para Malom e Quiliom certamente, e podemos imaginar que também para Elimeleque, a morte chegou cedo na vida; eles foram "roubados" do resto dos seus anos. E Noemi ficou desamparada de seus dois filhos e de seu marido muito cedo na vida.

Em segundo lugar, embora o livro de Rute apenas nos dê um rápido vislumbre de fé em que a morte não seja o fim da comunhão (1:17), havia uma certeza. O nome do homem não deve ser esquecido. Seu nome permaneceria na sua herança. 

Como era importante para ele, portanto, que tivesse um filho (4:5,10)! E como deveria ser desesperador, portanto, para Noemi o fato de que, além de ter perdido os três homens de sua família, ela não tivesse um único herdeiro através do qual os nomes deles continuassem e sua herança ficasse garantida! Seus homens morreram, e com eles os seus nomes!

Aqui o autor coloca um desastre em cima do outro na vida de Noemi, dando-nos um senso real do choque que atinge uma pessoa nessas condições. Ela certamente não havia merecido; com certeza fora inesperado. Não estaremos penetrando aqui no lado oculto da providência de Deus: o fato de que certos sofrimentos nossos parecem insuportáveis; algumas de nossas circunstâncias parecem tão injus­tas; e algumas de nossas perguntas ficam sem respostas?

Com Noemi aprendemos que fé, às vezes, significa uma disposição de deixar essas perguntas como mistérios de Deus, na confiança de que, em dias melhores, ele tem se mostrado fidedigno.

 O Senhor visita (1:6-7)

Então se dispôs ela com as suas noras, e voltou da terra de Moabe, porquanto nesta ouviu que o Senhor se lembrara do seu povo, dando-lhe pão. Saiu, pois, ela com suas noras do lugar onde estivera; e, indo elas caminhando, de volta para a terra de Judá,...

A nossa memória mantém vivo no presente o significado das experiências passadas. Com que frequência o povo de Deus recebeu a instrução de "lembrar" de como Deus o ajudou no passado. 

Depois do êxodo do Egito, na noite de Páscoa, a primeira palavra de Moisés , ao povo foi: "Lembrai-vos deste mesmo dia ... pois com mão forte o Senhor vos tirou de lá." Eles deviam se lembrar do seu tempo de escravos no Egito como um incentivo para a guarda do sábado; deviam lembrar que o Senhor era o seu Deus. 

Quando tivessem medo, deviam se lembrar do poder do Senhor. Quando repousassem em bênçãos, deviam se lembrar de que também o tinham provocado à ira. Grande parte das regras éticas de sua sociedade estava fundamentada na lembrança do tempo em que eram escravos e na salvação de Deus. Nos dias dos juizes, logo depois que Gideão morreu, houve proble­mas, porque o povo se voltou novamente para Baal e não se lembrou do Senhor seu Deus.

Mas Noemi se lembrou. As linhas de comunicação com os amigos da pátria continuaram abertas. Pelo testemunho posterior de Rute vemos que Noemi fora uma servidora fiel de Javé em Moabe. 

Ela man­tivera viva em sua consciência a realidade da ajuda do Senhor ao seu povo no passado. E aguardava sinais da sua ajuda no presente. Como o salmista, quando consumido com sofrimento e depressão, Noemi sem dúvida consolava-se "invocando os feitos do Senhor". Como Jonas em seu nada invejável estado aquático, a mente de Noemi estava em oração ("Quando dentro em mim desfalecia a minha alma, eu me lembrei do Senhor; e subiu a ti a minha oração"). 

Nos tempos de provação, fé às vezes significa deixar as dificuldades nas mãos de Deus, mesmo sem receber uma resposta. Uma fé assim é fortalecida pela lembrança constante de como Deus nos ajudou no passado. Pedro insiste com os seus leitores cristãos para que tenham em mente as promessas e os dons graciosos de Deus, e que os tenham como lembrete. E, acima de tudo, somos aconselhados a lembrar, a des­cansar e a nos alimentar da graça salvadora de Deus em Cristo sempre que comermos o pão e bebermos o cálice do Senhor "em memória" dele. 

A fé é uma caminhada de confiança e crescimento; é um móbile em movimento, não uma vida estática. E quando algumas partes balançam por algum tempo nas sombras, confiamos que aparecerão de novo na luz, como já aconteceu muitas outras vezes. Parte da espiritualidade dos homens e mulheres de fé no tempo de Noemi consistia em meditar nos grandes feitos de Deus no passado, e podemos aprender com eles a manter assim a fé viva em períodos de trevas.

Assim, o coração de Noemi permaneceu em Judá e ela não se esqueceu do seu Deus. Na verdade os seus ouvidos ficaram alertas às notícias que chegavam a Moabe, de que Javé não abandonara o seu povo: a fome terminara, o Senhor se lembrara do seu povo, dando-lhe pão. 

O Senhor, como já dissemos, traduz o nome de Deus, Javé. Ele é o Deus cujo nome pessoal indica o seu caráter: o Deus que está em atividade, o Deus que vem ao encontro do seu povo na necessidade, o Deus que liberta o seu povo pela ação de um remidor (goel) 

É através do caráter deste Senhor, revelado ao seu povo gerações antes, que Noemi mede agora a amargura de suas perdas e do seu iso­lamento (1:13, 21). É este Senhor que, descobrimos mais tarde, é adorado por Boaz e seus empregados, e cuja bênção é invocada sobre Rute (2:4,12). 

É este Senhor que é bendito por Noemi por causa da graciosa generosidade de Boaz, que é visto como o doador da vida e sob cujos cuidados providenciais Noemi finalmente encontra alegria (2:20,4:13-14). O livro de Rute é rico em sua revelação do tipo de Deus que é Javé.

O nosso autor anseia que o caráter deste Senhor domine a sua narrativa. É como se quisesse que os seus leitores colocassem os acontecimentos detalhados das alegrias e tristezas de sua história dentro do contexto do Deus cujo caráter foi descrito como "Javé".

Quanto significado existe na frase O Senhor se lembrará! As notícias que Noemi recebeu não são expressas em termos tais como "o tempo melhorou", ou "houve uma inversão económica", ou "a ameaça da invasão desapareceu". 

Tudo isso poderia fazer parte da cadeia das causas para a recuperação da fartura em Belém. Mas não, as notícias chegaram a Noemi em termos de ação do Senhor. Aqui há um tema central na Bíblia: toda a vida é traçada diretamente pela mão de Deus. Quando nos concentrarmos principalmente nas causas secundárias sentimo-nos encorajados a manipular o sistema. É a concentração na Grande Causa que nos ensina a viver pela fé.

Quando o Senhor "visita" o seu povo, ele o faz pelo julgamento ou através de bênção. O alimento que agora existia em Belém é en­tendido por Noemi como um dom de Deus. O sentido disto foi captado pelo salmista ("Abençoarei com abundância o seu man­timento, e de pão fartarei os seus pobres"), como também pelo sacerdote Zacarias séculos mais tarde, quando ele se deleitou no nascimento do mensageiro do Messias ("Bendito seja o Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo"). Com a confiança de Noemi nesse Deus, ela podia lidar, como veremos, com os sentimen­tos de ira que suas circunstâncias viessem a provocar.

Agora, com Rute e Órfã, ela inicia sua viagem de volta ao lar.

 

 

 

 

 


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